Uma interessante matéria sobre o lítio, apontado como um importante meio de controle das pulsões da morte...
A ideia de que o suicídio é um fenômeno multicausal cai por terra em face das pretensões desta natureza.
A polêmica da "felicidade em massa"
Por Dr. Ronaldo Laranjeira
Dom, 05 de Junho de 2011 11:41
Correio Braziliense – Caderno Saúde
Grupo de cientistas sustenta que a adição de lítio à água potável distribuída pelas torneiras, a exmplo do que já é feito com o flúor, pode ajudar a reduzir índices de suicídios, crimes violentos e uso pesado de drogas
“Ó, maravilha! Que adoráveis criaturas aqui estão. Como é belo o gênero humano! Ó, admirável mundo novo, que possui gente assim!”
William Shakespeare
No Centro de Incubação e de Condicionamento de Londres Central, um “edifício cinzento e atarracado de apenas 34 andares”, os cidadãos recebem, diariamente, uma dose de Soma, substância que elimina depressão, maus pensamentos, e mantém o comportamento antissocial à distância. Ninguém comete crimes, todos são felizes e nem um mínimo sinal de perturbação coloca a ordem em risco. Esse era o cenário de Admirável mundo novo, livro de Aldous Huxley, que pegou emprestado de Shakespeare a epígrafe da deslumbrada Miranda para descrever um planeta povoado por “adoráveis criaturas”, mantidas assim graças à ingestão constante de um composto que alterava seus cérebros.
Troque-se o Soma pelo lítio e a ficção aproxima-se da realidade. Com um objetivo bastante diferente dos ditadores do mundo criado por Huxley, cientistas têm sustentado que o elemento químico adicionado à água potável pode diminuir os índices de violência, de uso de drogas e de comportamentos autodestrutivos. Assim como foi feito com o flúor, o lítio, em teoria, poderia ser diluído na água consumida pela população, para prevenir ações desencadeadas por distúrbios mentais. A fonte da felicidade, contudo, não é unanimidade na comunidade científica. Ao contrário, à medida que crescem os estudos vinculando o lítio à redução da criminalidade, aumentam também as críticas a essa proposta.
Elemento mineral encontrado na natureza, o lítio é um dos mais antigos estabilizadores de humor da história da psiquiatria. Seu aparecimento na medicina ocorreu em 1818, quando se descobriu que o mineral conseguia dissolver cálculos renais. Não demorou para que o lítio começasse a ser usado para combater outros problemas vinculados ao ácido úrico, como gota e depressão.
O lítio virou moda e sua fama de elixir desmoronou somente no início do século 20, quando experimentos falharam em comprovar sua propriedade antigota. Ao mesmo tempo, porém, um psiquiatra austríaco começava a ter provas de que o carbonato de lítio, composto químico que tem o elemento como base, reduzia dramaticamente os índices de depressão. John Cade, que viveu no auge dos choques elétricos e da lobotomia, foi o primeiro médico a propor um tratamento menos agressivo para os distúrbios mentais. “Em 1949, ele publicou uma pesquisa feita com 10 pacientes maníacos, que melhoraram muito ao serem tratado com lítio. Suas anotações clínicas, porém, fizeram poucas menções aos efeitos tóxicos e não revelaram que um dos pacientes chegou a morrer por causa disso”, conta Joanna Moncrieff, do Departamento de Saúde Mental do Imperial College of London.
O estudo não seduziu a comunidade médica e ficou esquecido por um tempo, até que, na década de 1970, as pesquisas randomizadas usando o elemento químico versus um placebo, com base na descoberta do austríaco, acenderam o entusiasmo da psiquiatria. O carbonato de lítio entrou nos laboratórios farmacêuticos — de onde nunca mais saiu. Mas, e se o elemento, sem manipulação alguma, pudesse trazer os mesmos efeitos que as pílulas produzidas pela indústria?
Em números
Os primeiros cientistas a propor essa ideia foram os bioquímicos americanos Earl B. Dawson, D. Moore e William McGanity que, em 1971, publicaram um estudo relacionando os índices de violência no Texas aos níveis de lítio na água — o mineral naturalmente pode se misturar ao líquido trazido pela chuva ou pelo solo. Ao analisar amostras de urina de 3 mil texanos, Dawson descobriu que a água da cidade de El Paso continha significativas concentrações do elemento químico. Já em Dallas, distante 1,6 mil quilômetros, a água potável era pobre em lítio. Enquanto nesta cidade, em 1970, as estatísticas do FBI contabilizavam 5.970 crimes por 100 mil habitantes, em El Paso a proporção era bem menor: 2.889 por 100 mil. Em Dallas, ocorreram 242 assassinatos naquele ano, contra 13 em El Paso.
O estudo levantou dúvidas, até pela amostragem reduzida. Uma reportagem publicada na época pela revista Times dizia que Frederick Goodwin, especialista em estudos sobre lítio do Instituto Nacional de Saúde Mental, achava que a substância não tinha “essas propriedades mágicas sobre a população”. “Outros não têm tanta certeza. Se o lítio tem algo a ver coma relativa paz em El Paso, o que poderia fazer por outras cidades como Nova York e Chicago?”, questionava a matéria.
A pesquisa do trio foi replicada anos depois pelos bioquímicos Gerhard N. Schrauzer e Khrishna Shrestha, das universidades da Califórnia, nos Estados Unidos, e Oriente, na Venezuela. Eles coletaram dados de 27 dos 254 condados do Texas, de 1978 a 1987, comparando informações sobre furtos, roubos, homicídios, suicídios e estupros às quantidades de lítio encontradas na água. Nos condados onde a concentração do elemento variava entre 70ug/l (microgramas por litro) e 170ug/l, as ocorrências de atentados contra o patrimônio não eram diferentes daqueles onde a presença do lítio na água era praticamente nula. Mas os pesquisadores ficaram impressionados ao observar que, no caso dos crimes associados a distúrbios mentais ou do comportamento, a situação era bem diferente.
Ao longo de 10 anos, as taxas de homicídios, suicídios e estupros por 100 mil habitantes foram de 30% a 50% menores nos condados onde a concentração de lítio era de média a alta. O mesmo ocorreu quando foi relacionado o consumo de drogas à quantidade de lítio na água. “Na população em geral, a suplementação de lítio na água comum pode fornecer meios simples, seguros e econômicos de redução da incidência de crimes violentos, suicídio e uso de drogas narcóticas”, concluíram Schrauzer e Khrishna no artigo publicado em 1989 no Biological Trace Element Research.
Duros ataques
A solução, porém, não era tão simples como acreditavam os cientistas. Os resultados da pesquisa foram seguidos por uma enxurrada de críticas em publicações médicas, assim como o que ocorreu depois de outros estudos, mais atuais, que repetiram aspectos do trabalho de 1989. “As razões sociológicas para o suicídio são muito importantes, e as taxas de variação em diversos países estão ligadas a problemas como migração, pobreza e questões econômicas. A adição de lítio à água da torneira não vai alterar esses fatores”, critica o psiquiatra Prabha S. Chandra, do Departamento de Psiquiatria do Instituto Nacional de Neurociências e Saúde Mental da Índia.
Chandra refere-se a um artigo publicado há dois anos no British Journal of Psychiatry, no qual Takeshi Terao, professor da Universidade de Oita, no Japão, descreve uma incidência menor de suicídios em 18 províncias japonesas onde o lítio pode ser encontrado em maior quantidade na água potável, entre 0,7ug/l e 59ug/l. Com isso, uma pessoa ingere cerca de 10mg do elemento por dia — nos medicamentos, são consumidos entre 450mg a 1,2 mil miligramas. “Em minha opinião, uma exposição de longo prazo a pequenas dosagens de lítio na água ingerida pela população pode aliviar a agressão e o impulso em geral, coisas que estão associadas à prevenção do suicídio”, defende Terao.
Mas as críticas não se restringem à possível eficácia de uma baixa dosagem. Em alta concentração, o lítio pode trazer efeitos negativos severos, como problemas renais, diabetes e ganho de peso. Seguindo a lógica de Terao, se pequenas amostras do elemento influenciam positivamente o organismo, o mesmo pode ser dito do contrário, alegam especialistas. Um estudo publicado recentemente no Environmental Health Perspectives mostrou que a ingestão acima de 10mg de lítio dissolvido na água pode inibir o hormônio TSH. “A exposição ao lítio via água de beber pode afetar a tireoide, um efeito colateral já conhecido durante o tratamento médico com a substância”, alega Karin Broberg, bióloga molecular da Universida de de Lunds, na Suécia.
Para Nestor Kapusta, principal autor de um artigo publicado recentemente no British Journal of Medicine, são necessários mais estudos sobre o assunto, embora ele tenha chegado a uma conclusão similar à da pesquisa japonesa. O austríaco replicou o estudo de Terao em 99 distritos do país, entre 2005 e 2009. Os resultados foram semelhantes: quanto maior a concentração de lítio, menor os índices de suicídio. “De fato, há outros fatores envolvidos no suicídio, e o lítio explica apenas 15% da predisposição. Mas crescem as evidências científicas de que o elemento tem efeitos muito importantes no cérebro, agindo como antidepressivo e neuroprotetor — o lítio parece prevenir a morte celular precoce”, diz.
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