sábado, 9 de outubro de 2021

Karine Wlasenko Nicolau | UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso -  Academia.edu

"Campanha deveria promover a vida ao invés de falar em suicídio"

A psicóloga e professora da UFMT Karine Wlasenko Nicolau acredita que a campanha do Setembro Amarelo deveria focar mais na valorização da vida ao invés de falar em prevenção ao suicídio. 

O Setembro Amarelo foi criado no Brasil em 2015 por uma iniciativa do CVV (Centro de Valorização da Vida), CFM (Conselho Federal de Medicina) e ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). A ideia é conscientizar sobre a prevenção ao suicídio e dar visibilidade à causa.

"Temos que cuidar das palavras que a gente usa e o modo como a gente trata a situação. Prevenção do suicídio fica uma coisa muito no ar. Para se prevenir eu tenho que ter alguém que se coloque como potencial suicida, isso é um problema. Temos que tomar muito cuidado para que não seja um disparador", afirma a psicóloga, em entrevista ao MidiaNews

Segundo a Karine, que é doutora em Ciências e Tecnologias em Saúde na área de Saúde Mental, uma forma de combater a depressão e os pensamentos suicidas é se socializar mais. "Se você me perguntar qual é a receita do bolo, seriam as ligações da vida, o compromisso com ela e o não isolamento", disse. "É uma ironia falar isso na pandemia, mas numa pandemia a gente pode se isolar fisicamente e mesmo assim fazer contatos". 

Na entrevista, a profissional falou ainda sobre a necessidade de as pessoas naturalizarem mais a morte, os sinais da depressão e os tratamentos.

Confira os principais trechos da entrevista:

MidiaNews - Qualquer pessoa está sujeita a desenvolver depressão? Há gatilhos ou facilitadores que acionam a doença?  

Karine Wlasenko Nicolau - Teoricamente sim. Qualquer pessoa poderia desenvolver uma depressão, mas isso não é o que acontece individualmente. A depressão se desenvolve no contexto de vida de uma pessoa e não de modo isolado. Envolve o modo como ela vive, se alimenta, se relaciona e especialmente de como ela investe a energia no seu dia. Essa é uma questão bem importante: a organização da vida como um fator. 

Na abordagem terapêutica que eu trabalho a gente entende que haveria tipos de personalidades mais e menos propensas à depressão. Costumamos pensar isso como aquele marcador de incêndio que tem aqui no Centro-Oeste. Ele pode estar com maior risco de “fogo”. Mas uma pessoa com personalidade propensa pode passar a vida toda sem risco de “incêndio”. Enquanto outra pessoa, aparentemente com menor risco, pela situação de vida, pode ser levada a ter um quadro mais grave de depressão. Então, teria uma predisposição, de alguma forma, mas estaria muito mais atrelada às condições de como essa pessoa vive e organiza sua vida e faz as suas ligações e conexões, especialmente as conexões sociais. 

MidiaNews - Como a doença age na mente e no corpo de uma pessoa? 

Karine Wlasenko Nicolau - A gente costuma comparar a depressão com uma tristeza, mas a depressão não é uma tristeza. É um rebaixamento psicoemocional que afeta o organismo de um jeito sistêmico, ou seja, total. Ela afeta as emoções, a movimentação, etc. Não está localizada, não tem como extrair, por exemplo, a depressão de uma pessoa. Ela é um nível de desenergização no sentido de funcionamento, de ter força para tocar a vida. Esse é um traço importante da depressão do ponto de vista psicopatológico. 

MidiaNews - Quais as formas de diagnosticar a doença? 

Karine Wlasenko Nicolau - Na parte da psiquiatria a gente tem o exame clínico, basicamente, e na psicologia também temos muitas testagens utilizadas e validadas para identificar a depressão. A gente pode dizer que existe um diagnóstico formal para a depressão: médico, psicológico e psiquiátrico. Mas a depressão nas pessoas é muito particular. É uma resposta a certas condições psicoemocionais e de vida. Os relatos sobre a depressão ou registros médicos têm muito mais a ver com a necessidade dos profissionais de trocarem informações, do que para atender as pessoas.

MidiaNews - Como é possível sair de um quadro de depressão? 

Karine Wlasenko Nicolau - Existe todo um caminho particular para cada pessoa resgatar as suas emoções, especialmente o contato consigo mesmo para sair da depressão. Inclusive com a movimentação física e com o resgate dessa fortaleza, porque a depressão tem a ver com o desligamento dos processos da vida. No entanto, cada um faz esse desligamento de uma forma diferente, esse processo é muito próprio. Isso é importante de ser observado, porque os tratamentos também têm que ser muito voltados para cada pessoa, não pode ser nada muito parecido, muito homogêneo.

Se você me perguntar qual é a receita do bolo, seriam as ligações da vida, o compromisso com ela e o não isolamento. É uma ironia falar isso na pandemia, mas numa pandemia a gente pode se isolar fisicamente e mesmo assim fazer contatos. Então, é nesse movimento de vinculação, de compromisso, de colaboração coletiva que está a saída. Quanto menos a gente colabora coletivamente, mais estamos propensos a ter depressão.

MidiaNews - Podemos falar em diferentes níveis ou estágios da depressão? Como isso funciona? 

Karine Wlasenko Nicolau - Podemos dizer que sim. A gente costuma falar em depressão leve, depressão moderada e depressão grave. Isso tem a ver com os efeitos que esse quadro psicoemocional tem nas pessoas e o quanto a vida dela fica comprometida por conta disso. 

Então, é claro, se pensar na promoção da saúde e na prevenção, a gente deveria estar com o olhar atento para esses momentos e essas ligações com relação à qualidade de vida, para que um quadro de depressão não se aprofunde, não se desenvolva. Com uma gravidade maior dessa doença, a gente também tem maiores dificuldades, inclusive da pessoa procurar atendimento, procurar ajuda. 

MidiaNews - Quais as possíveis formas de tratamento para a doença?

Karine Wlasenko Nicolau - Hoje em dia temos muitas abordagens, tanto na área clínica - mais tradicional -, quanto em práticas integrativas que hoje já fazem parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e trabalham com todos os quadros de depressão. Mas o tratamento é algo muito individual. Não podemos dizer que existe um que seria padrão. 

Às vezes a medicação é necessária para que a pessoa consiga sair desse quadro e comece a desenvolver ações que resgatem essas ligações que ela perdeu

Na minha área, que é essa psicologia do corpo, a gente vai trabalhar muito com a questão corporal: a movimentação, a respiração e o exercício físico - importante no quadro depressivo. Há pessoas que mesmo em quadros leves sentem muito cansaço e desmotivação para o movimento físico, mas ele pode ter um efeito muito positivo. 

O mais importante é que a pessoa tem que participar desse processo, não só receber esse tratamento passivamente. Ela deve entender que o quadro em que ela se encontra é uma resposta. Não se pega depressão, se desenvolve um quadro depressivo por algum motivo na vida

MidiaNews - Toda pessoa que tem depressão está sujeita a ter pensamentos suicidas? 

Karine Wlasenko Nicolau - Poderíamos dizer isso por causa desse rebaixamento, desse cansaço, desse desconforto que ela sente, mas isso não é regra, não. Há estudos mostrando, por exemplo, que muitos jovens que fizeram a tentativa [de suicídio] demonstram um impulso que depois não se repetiu. Isso mostra que [o suicídio] tem um caráter impulsivo e nem sempre é decorrente de um quadro depressivo muito grave. Por outro lado, existem outros estudos mostrando uma tendência da pessoa que teve uma tentativa, fazer uma nova tentativa. As coisas são singulares, são muito particulares.

Isso de certa forma mostra que não devemos estigmatizar a coisa toda, do tipo: “Quem está com depressão vai tentar o suicídio”, não, não vai. É relativo, são respostas das pessoas para as vida delas. 

MidiaNews - Campanhas como a do Setembro Amarelo causam efeito? Elas são realmente efetivas? 

Karine Wlasenko Nicolau - O que eu te falo é profissional, mas também pessoal. Pensando em efetividade, eu diria que o Setembro Amarelo deveria ser um mês para a gente promover a vida. Temos que cuidar das palavras que a gente usa e o modo como a gente trata a situação. Então, talvez, em vez de ser um mês de prevenção do suicídio, devesse ser um mês de promoção da vida. Isso faz sentido, porque todos nós precisamos dessa promoção da vida.

Prevenção do suicídio fica uma coisa muito no ar. Para se prevenir eu tenho que ter alguém que se coloque como potencial suicida, isso é um problema. Temos que tomar muito cuidado para que não seja um disparador, principalmente para as pessoas com uma personalidade mais impulsiva, que nem estavam em um quadro depressivo tão grave assim. Às vezes outras patologias psíquicas podem levar a pessoa a pensar em suicídio, mas não necessariamente a depressão. 

MidiaNews - Quando o pensar na morte pode se tornar um risco para a pessoa?

Karine Wlasenko Nicolau - Do ponto de vista cultural, pensar na morte é algo importante, só não precisamos ser fixados nela. Talvez, inclusive, a nossa negação da morte traga tantos problemas em relação às ligações em vida. Devemos pensar na morte como processo da vida. Somos finitos, nenhum de nós é eterno. 

Na nossa cultura parece que a morte é um acidente, mas ela não é. Ela é natural e faz parte da vida. Naturalizar mais a morte pode ser um grande ganho, inclusive para a promoção da saúde mental: é pensar nisso, é lidar com isso, é passar por isso. Principalmente nesse período que estamos vivendo [pandêmico] em que muitas pessoas estão lidando com a morte. É importante que as pessoas passem pelo luto para entrar em contato com uma outra parte da vida

MidiaNews - A que sinais familiares e amigos devem ficar atentos para evitar um possível suicídio? 

Karine Wlasenko Nicolau - Acho que um sinal importante é a mudança. Quando a gente nota muito retraimento, muito cansaço. Eu não pensaria exatamente na questão do suicídio, mas mais na questão da depressão, que é mais visível. No caso do suicídio, em alguns quadros a gente não consegue identificar assim com tanta antecedência. Mas no caso da depressão como sendo um fator, não o único, mas um deles, é observar essa mudança e lembrar que muito da depressão tem a ver com esse desligamento

Buscar sempre o contato dos familiares, não é controlar, mas manter esse contato, o vínculo, manter a conversa aberta. O controle tem um efeito paradoxal que, ao invés de ajudar, atrapalha. 

MidiaNews - Há algum registro de aumento de casos do adoecimento mental durante a pandemia?

Karine Wlasenko Nicolau - Temos uma pesquisa em andamento com a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasília, Goiás e com Mato Grosso. São quatro universidades federais do Centro-Oeste reunidas para fazer um mapeamento do panorama de saúde mental com docentes, técnicos e estudantes das unidades. 

A gente está observando que a ansiedade disparadamente é um fator nesse período [de pandemia], em maior número do que a depressão. Os nossos dados devem ser processados ao longo dos próximos meses e a gente deve ter mais informação sobre isso, mas na prévia já observamos que a ansiedade é o grande fator, em termos psicopatológicos. 

MidiaNews - No cenário de pandemia, muitos são os possíveis fatores que geram ansiedade. É possível destacar algum deles como sendo o principal causador? 

Karine Wlasenko Nicolau - Pelo que eu tenho percebido, é a superestimulação nesse período. Todos nós estamos imersos com o mundo virtual. Alguns ainda com sobrecarga na família, pessoas adoecidas, além da expectativa, que é o primeiro ponto da ansiedade. 

A ansiedade como expectativa seria uma coisa interessante quando a gente se abre para uma novidade. Mas quando ela não cessa, a gente passa o dia esperando alguma coisa. 

Uma metáfora da ansiedade seria a suspensão, nós ficamos suspensos esperando algo. Mas já estamos há quase dois anos esperando. Então isso é um gerador de ansiedade. Os estímulos deveriam gerar uma resposta e nem sempre é o que acontece. Por exemplo, quando você observa algum noticiário com uma situação grave ou muito dramática - como a que temos visto -, você não consegue dar uma resposta imediata para aquilo, é só o impacto. 

Fonte: www.midianews.com.br/cotidiano/campanha-deveria-promover-a-vida-ao-inves-de-falar-em-suicidio/407614 


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