quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Algoritmos em defesa da vida

Cartas e diários de Virginia Woolf inspiram estudo sobre prevenção do suicídio

Pesquisadores utilizaram algoritmos de computador para prever padrões de comportamento suicida em textos da escritora


Um grupo de pesquisadores da UFRGS analisou a viabilidade de se usar algoritmos de classificação de texto para prever padrões de comportamento suicida. A partir de cartas e diários da escritora britânica Virginia Woolf, o programa de computador foi capaz de identificar com considerável acurácia – 80,45% de acerto – os textos escritos nos meses imediatamente anteriores a seu suicídio. Os resultados do estudo foram publicados na revista científica Plos One nesta quarta-feira, 24 de outubro, e demonstram o potencial das técnicas de machine learning para a detecção de situações de risco e a prevenção do suicídio.

O machine learning, ou aprendizado de máquina, é um ramo da inteligência artificial focado em algoritmos capazes de aprender com dados e extrair padrões para fazer previsões. São técnicas próprias para analisar grandes quantidades de dados e identificar relações não lineares entre eles. Nesse estudo, foi utilizado o algoritmo Naive Bayes. Amplamente empregado para a filtragem de spams, o método estima a probabilidade de ocorrência de um evento a partir da análise de textos. “Diante disso, nós tivemos a ideia de analisar cartas e diários da famosa romancista Virginia Woolf. Ela era bem produtiva e escrevia com frequência, inclusive nos dias que antecediam tentativas de suicídio. Basicamente, criamos um modelo utilizando os textos dela e o algoritmo Naive Bayes para identificar textos que sinalizariam que ela iria tentar suicídio”, explica o professor da Faculdade de Medicina da UFRGS Ives Cavalcante Passos, um dos autores da pesquisa.

Virginia Woolf deixou um vasto material em seus diários, nos quais escreveu livremente sobre seus sentimentos, fornecendo um registro de seus estados de humor. Segundo biógrafos e pesquisadores, a escritora sofria de transtorno bipolar e teve vários episódios depressivos e maníacos, até que tirou sua própria vida em 28 de março de 1941, durante uma crise depressiva. Ela tentou suicídio em pelo menos em três ocasiões. Inclusive, uma semana antes de morrer, chegou em casa encharcada depois de ter sobrevivido a uma dessas tentativas.

“Cerca de 90% das pessoas que cometem suicídio têm alguma doença psiquiátrica. Embora seja um evento trágico, existem diversas formas de prevenir o suicídio. A literatura científica, portanto, tem buscado cada vez mais modelos que possam prever esse evento para identificar quais as pessoas que estão sob maior risco”, afirma Passos. Há outros estudos que também utilizaram machine learning para prever o suicídio, incluindo alguns feitos pelo mesmo grupo de pesquisa, como um que utilizou algoritmos para prever tentativas de suicídio em pacientes com transtornos de humor a partir de variáveis clínicas, como a presença de sintoma psicóticos ou de transtorno de estresse pós-traumático. O publicado nesta quarta-feira, entretanto, foi o primeiro a usar dados em texto para identificar padrões em escritos anteriores ao suicídio.

A análise compreendeu 46 textos escritos nos dois meses anteriores ao suicídio de Virginia e 54 escolhidos aleatoriamente entre os produzidos em outros períodos de sua vida. Integraram a pesquisa somente cartas e diários; livros, romances, contos e artigos foram excluídos. “Compilamos esses textos numa planilha de Excel e utilizamos um pacote chamado Caret de um software chamado R para fazer as análises. O algoritmo de machine learning Naive Bayes foi selecionado para análise pois ele consegue classificar com uma boa acurácia quando dados de texto são utilizados. O modelo é primeiro treinado e criado num banco de dados de treino e depois testado em cartas que não foram utilizadas no processo de treino”, esclarece o pesquisador.

É a partir da identificação de padrões textuais que o algoritmo estima se um determinado documento estaria ou não relacionado ao suicídio. Alguns termos apareceram exclusivamente nos textos que Virginia escreveu pouco antes de suicidar-se, como blue (azul ou triste), miss (sentir falta), e war (guerra). Outros só apareceram fora desse período, a exemplo de better (melhor), good (bom), hope (esperança) e Virginia. Há também aqueles que, apesar de aparecerem em ambos os períodos, foram mais frequentes em uma ou outra fase. São essas presenças ou ausências de determinadas palavras que o computador avalia.

O algoritmo foi capaz de identificar corretamente se um texto estava ou não relacionado ao suicídio em 80,45% dos casos – um resultado bastante positivo. Foram 69,23% de textos relacionados ao suicídio corretamente classificados, e 91,67% não relacionados com o suicídio adequadamente identificados como tal. O estudo foi feito em nível individual e possui, portanto, suas limitações. Mas os resultados são promissores.

Conforme explica Passos, algoritmos de machine learning podem ser aplicados a pacientes com transtornos psiquiátricos a partir de dados coletados em tempo real em redes sociais, mensagens e e-mails, entre outros.  “Por exemplo, quando um evento adverso é sinalizado como um resultado de interesse pelo médico (como tentativa de suicídio, recaída de episódio de humor ou sintomas psicóticos), o algoritmo pode analisar os dados de texto para encontrar padrões que permitam prever quando esses eventos são prováveis de ocorrer novamente. Isso pode melhorar a avaliação do paciente, possibilitando a intervenção precoce, e fornecer insights em tempo real para os médicos sobre o estado de humor e o risco de suicídio. Além disso, tais modelos podem ser personalizados para o paciente, criando um ciclo de inteligência artificial que se adapta à medida que os dados são coletados ao longo do tempo”, destaca o professor. Para ele, as técnicas de machine learning, com suas capacidades de capturar sinais não lineares e lidar com grande quantidade de dados, irão revolucionar as ciências da saúde e a saúde mental.

Artigo científico

BERNI, Gabriela de Ávila et al. Potential use of text classification tools as signatures of suicidal behavior: a proof-of-concept study using Virginia Woolf’s personal writings. Plos One, 2018.

www.ufrgs.br/secom/ciencia/cartas-e-diarios-de-virginia-woolf-inspiram-estudo-sobre-prevencao-do-suicidio/

sábado, 3 de novembro de 2018

Luto em superação. Tragédias transformadas em projetos sociais

Brincadeira perigosa, suicídio, câncer

Famílias ressignificam a dor com a criação de projetos sociais voltados para combater a causa da morte dos filhos

Bia Dote 



Se Lucinaura, Demétrio e Maria Aparecida pudessem escrever a própria história, é certo que evitariam um capítulo específico da biografia: a perda precoce de um filho. Quando Bia, Dimitri e Kauê partiram, as narrativas que estavam sendo construídas no dia a dia foram interrompidas; os sonhos em conjunto também. Foi preciso que os pais buscassem novos motivos para seguir vivendo, e encontraram isso revisitando a trajetória compartilhada com os entes nos poucos anos em que eles passaram por aqui.

Bia, por exemplo, era uma garota muito alegre, que estava sempre rodeada de pessoas e disposta a ajudá-las. Seu abraço caloroso e carinhoso era sinônimo de cura. Ela chegava até mesmo a cantar ao telefone para colegas que estavam do outro lado da linha e não conseguiam dormir.  Aos 13 anos, porém, a jovem escolheu não mais continuar com a própria vida, deixando a família com inúmeros questionamentos. Dentre eles, "o que fazer com o amor que fica?".

"Quando fomos elaborando nosso luto, pensamos: o que nós podemos fazer pra manter Bia presente na nossa vida enquanto respirarmos? A gente queria fazer alguma coisa que parecesse com a personalidade de Bia, que fosse a cara dela, que fosse muito do que ela via da vida, e como ela gostaria que as coisas fossem", lembra a mãe, Lucinaura Diógenes, emocionada.

Foi então que, em 2013, cinco anos após a partida da jovem, nasceu o Instituto Bia Dote, uma organização sem fins lucrativos que trabalha com a prevenção do suicídio.

A salinha no 11º andar da Torre Quixadá reúne vários objetos que pertenceram à garota. Um violão, que ela quase não tocou, um coração feito com peças de lego que ela adorava, uma coleção de carrinhos, quadros, livros... O ambiente, organizado pela mãe, Lucinaura; o pai, Tadeu; e a irmã, Alice, acolhe centenas de pessoas para acompanhamento psicológico, tal como o abraço dela provavelmente acolhia. "Presentificar Bia por meio do Instituto me ajudou muito, me ajuda, é um projeto de vida. Pro resto da minha vida eu vou trabalhar com isso", conta Lucinaura, que iniciou até um curso de Psicologia para atuar mais ativamente na causa. 

DimiCuida 


Demétrio Jereissati foi outro pai que abraçou uma nova missão após a morte do filho Dimitri, de 16 anos. O jovem perdeu a vida após brincar com o jogo do desmaio, uma prática de não-oxigenação estimulada por vídeos disseminados na internet. Com poucas informações no Brasil a respeito de casos semelhantes, os pais do garoto, Demétrio e Heloisa, foram em busca de respostas logo nos primeiros meses de luto, viajando até o 2º Colóquio Internacional dos Jogos de Desafios, na França.

As informações colhidas no evento e outras pesquisas feitas a partir dele impulsionaram o casal a criar, em Fortaleza, em 2014, o Instituto DimiCuida, com objetivo de fazer um trabalho de prevenção para profissionais, pais, crianças e adolescentes, além de dar esclarecimento e apoio às famílias que vivessem situações semelhantes.

"Quando a gente passa por uma situação dessas, conversar com quem passou pela mesma coisa e tem uma compreensão, traz um conforto maior. Você tá próximo de quem passou. É como se você enxergasse no outro a força que ele teve para superar e isso lhe ajudasse também a encontrar o seu caminho", observa Demétrio.

O pai de Dimitri confessa que não imagina como estaria se não fosse trabalhando nesse instituto. "Quando se perde um filho, o dia seguinte não vai mais ser igual. Ele não é mais igual. A gente aprende a viver com o dia seguinte como ele veio", conta Demétrio. Hoje, cada prevenção, cada artigo escrito e cada oportunidade de falar sobre o tema servem de oxigênio para a família Jereissati. "A gente imagina que possa estar evitando que outras famílias e outras pessoas passem por isso. E de alguma forma a gente se alinha quando consegue fazer esse trabalho", avalia.

Além da prevenção para a causa da morte do adolescente, o instituto trabalha em outras duas frentes, baseadas nas ações e nos sonhos dele:  a sensibilização e mobilização da sociedade para os cuidados com animais de rua; e a promoção do desenvolvimento e execução de ações de capacitação, qualificação profissional e oportunidades de trabalho na área do turismo ecológico e de atrações naturais. "Talvez hoje eu pense mais do Dimitri do que quando ele tava aqui embaixo. Isso de alguma forma nos conforta e nos alimenta", aponta o pai, que também acredita sentir-se mais próximo do filho enquanto conta sua história.

Cândido Kauê 


No interior do Ceará, mais precisamente na cidade de Aiuaba, Maria Aparecida Freitas também encontrou uma forma de reconectar-se com o filho falecido em outubro de 2012. Vítima de câncer, Cândido Kauê lutou contra a doença dos 2 aos 5 anos de idade, mas durante todo o período demonstrou força e transmitiu mensagens a sua maneira. "Ele era uma criança que sempre dividia o pouco que tinha com os coleguinhas, que se sentia muito bem quando conseguia consolar um colega que estava chorando", lembra a mãe.

Todos os desafios que a família passou durante o tratamento de Kauê, desde os financeiros até os desgastes físicos e emocionais, levaram Aparecida a inspirar-se no comportamento humanitário do filho após sua partida. Cinco meses depois da perda, ela registrou a Fundação Cândido Kauê, uma entidade beneficente de assistência social, sem fins lucrativos, que atende às necessidades psicossociais de crianças e adolescentes com câncer, e também de seus pais, em pelo menos nove municípios da região.

"Quando cada um de nós seres humanos consegue fazer um pouco, significa tanto. Ajudar a quem precisa é o fundamental na vida da gente", acredita a mãe do pequeno. Os testemunhos de quem hoje recebe ajuda da Fundação a encorajam a continuar ao lado de um conjunto de profissionais voluntários que se preocupam somente em fazer o bem. "Antes, eu achava que jamais ia sentir alegria de novo. Mas lhe confesso que com esse projeto em ação há momentos de gratidão em que não consigo conter as lágrimas de felicidade".

A passagem física de Cândido Kauê, Dimitri e Bia por aqui foi realmente bem curta, mas no livro da vida dos seus familiares, amigos e de todas as pessoas que cruzam com os projetos que levam seus nomes, fica provado diariamente que a história dos três não tem fim.

Conheça o trabalho das instituições:

Instituto Bia Dote 
Foco: Prevenção ao suicídio e valorização da vida
Público-alvo: Atendimento para pessoas a partir de 12 anos
Endereço: Av. Barão de Studart, 2360, Aldeota
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 8h às 18h
Contato: (85) 3264-2992

Instituto DimiCuida 
Foco: Prevenção sobre jogos de não-oxigenação e desafios de internet
Público-alvo: Crianças, adolescentes, profissionais das áreas de educação, saúde, segurança pública e pais
Endereço: Av. Santos Dumont, 1388, Aldeota
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 8h às 18h
Contato: (85) 3255.8864 / (85) 98131.1223 (whatsapp)

Fundação Cândido Kauê 
Foco: Assistência social a pessoas com câncer
Público-alvo: Crianças, adolescentes e pais
Endereço: Rua Olga Feitosa, 188, Centro, Aiuaba-CE
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, de 7h às 17h
Contato: (88) 3524-1457

+ Além do Ceará
Conheça outras iniciativas nacionais de famílias que transformaram o luto em luta:

Vai Lucas: Após a morte de Lucas, de 10 anos, por asfixia decorrente de engasgamento, numa atividade escolar, a mãe Alessandra Begalli e a tia do garoto, Andrea Betiatii, criaram o projeto “Vai Lucas”, voltado para campanhas de primeiros socorros em Campinas. A luta avançou para uma lei federal, sancionada em outubro, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de atendimento para professores e funcionários de estabelecimentos de ensino.

Não Foi Acidente: Depois de perder a mãe e a irmã, vítimas de um atropelamento por um carro em alta velocidade, com motorista supostamente embriagado, em São Paulo, Rafael Baltresca e amigos criaram o movimento “Não Foi Acidente”. Após seis anos de luta, o projeto conquistou a alteração da Lei Seca federal, em dezembro de 2017, ampliando a pena do crime de trânsito, no caso de homicídio culposo, de 2 a 4 anos para 5 a 8 anos.

Fonte: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/do-luto-a-luta-morte-de-filhos-leva-pais-cearenses-a-investirem-em-projetos-sociais-1.2021156