quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Anjos na ponte: salvando vidas na Golden Gate

Os 'anjos' que já salvaram milhares de vidas impedindo suicídios em ponte dos EUA

Fernando Duarte - BBC World Service (16 outubro 2019)

Os policiais Kevin Briggs e Mia Munayer passaram as duas últimas décadas trabalhando na Golden Gate, em São Francisco, onde mais de 1,7 mil pessoas se mataram desde 1937, e impediram muitos de fazer o mesmo.

"Nenhuma pessoa que vem à ponte para pular quer morrer. Elas só querem saber que alguém se importa", diz Kevin Hines, que tentou dar fim à sua vida saltando da Golden Gate, em São Francisco, nos Estados Unidos, em setembro de 2000.

Embora várias pessoas o tenham visto na ponte pouco antes e uma turista tenha até pedido para ele tirar uma foto dela, ninguém percebeu que Hines estava angustiado ou perguntou se havia algo errado. Então, ele pulou.

Por um milagre, Hines sobreviveu à queda de 75 metros nas águas frias do Pacífico. No entanto, mais de 1,7 mil pessoas morreram ao pular da mesma ponte desde sua inauguração em maio de 1937, segundo dados oficiais.

A Golden Gate é a ponte mais visitada do mundo e também é um dos principais pontos de suicídio do planeta, a ponto de ter sua própria equipe de voluntários, a Bridgewatch Angels (anjos da brigada da ponte, em tradução livre), dedicada a detectar potenciais suicidas e salvar suas vidas com um método simples: ouvir o que têm a dizer.

Só em 2018, 214 pessoas tentaram pular. O fato de apenas 27 terem feito isso de fato é um sinal do sucesso do trabalho conjunto destes voluntários com a polícia.

O suicídio é um assassino global em grande escala. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que ocorram cerca de 800 mil mortes por este motivo no mundo a cada ano .

De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a principal agência de saúde pública dos Estados Unidos, 47 mil pessoas tiraram suas próprias vidas no país em 2017, de acordo com os dados mais recentes disponíveis. O suicídio é hoje a segunda principal causa de morte entre os americanos com idades entre 10 e 34 anos.

Uma pessoa pode elaborar muitas razões para se matar, mas há uma forte ligação disso com problemas de saúde mental, especialmente depressão: 90% das pessoas que morrem por suicídio têm algum problema deste tipo ou teriam consumido substâncias químicas de forma abusiva no momento da morte, de acordo com a Save, uma organização americana de conscientização e prevenção de suicídio.

"Tinha que fazer algo para ajudar"


Embora a depressão seja um distúrbio de saúde mental tratável, o suicídio costuma ser um ato impulsivo. O que os Bridgewatch Angels procuram fazer é impedir que o suicídio inviabilize esta possibilidade de recuperação.

Apesar de viver na região, a policial Mia Munayer não tinha conhecimento do legado sombrio da Golden Gate, até assistir em 2010 ao documentário The Bridge (A ponte, em inglês), sobre o assunto.

"Tinha que fazer algo para ajudar a impedir que mais pessoas morressem", diz ela, que fundou então a Bridgewatch Angels. Desde 2011, os voluntários percorrem a ponte em datas importantes, como Dia dos Namorados ou véspera de Natal, e são treinados para abordar qualquer pessoa que achem que possa estar em perigo.

Munayer gastou mais de US$ 10 mil (R$ 41,5 mil) do próprio bolso para financiar as campanhas, que incluem seminários para pessoas interessadas em ajudar a patrulhar a ponte em épocas de maior preocupação.

A policial treina os voluntários para lidar com aqueles que parecem isolados e angustiados. Eles aprendem a detectar os sinais de alerta e maneiras de reagir a isso. Os voluntários fazem perguntas que podem começar com um simples "você está bem?". É uma questão de estimular a pessoa a falar.

"Conversamos com as pessoas. Mostramos que não estão sozinhas. Nós ouvimos. Às vezes, essa é a melhor resposta. Mas é importante tentar não tocar nos assuntos sensíveis e apenas mantê-las conversando", diz Munayer.

O guardião da Golden Gate


O sargento aposentado Kevin Briggs realizou paralelamente um trabalho semelhante. Ele não teve escolha ao se envolver com essa questão: por quase 20 anos, a Golden Gate fez parte de sua rota diária de patrulha.

Ele teve seu primeiro encontro com alguém que tentava se suicidar em 1994. "Na época, os policiais não tinham treinamento formal para lidar com essas situações. Fiquei aterrorizado quando vi uma jovem subindo no beiral", diz Briggs.

Ele começou então a ler sobre como lidar com suicidas no seu tempo livre. "Foi uma boa ideia, porque, por quase 20 anos, tive de lidar com essas situações com muita frequência."

"Às vezes, eu me questionava sobre as pessoas que salvei, como se fosse uma pesquisa. 'O que eu disse de bom? O que eu disse ou fiz de ruim?'", explica ele.

Ele ficou conhecido como "o guardião da Golden Gate" por ter convencido mais de 200 pessoas a não saltar. Fracassou em apenas duas ocasiões. "Você costuma se lembrar mais das pessoas com quem falhou do que daquelas que ajudou", diz ele, que mais tarde lidaria com um distúrbio de estresse pós-traumático por causa deste tipo de trabalho.

O ex-policial ganhou fama com um resgate de 2005 amplamente documentado pela imprensa local. Kevin Berthia tinha 22 anos, enfrentava uma depressão e tinha uma dívida de US$ 250 mil (R$ 1,03 milhão) por causa do tratamento de sua filha prematura. Briggs o encontrou prestes a saltar da ponte. "Conversamos por mais de 90 minutos, e ele desistiu", lembra ele.

As imagens desta intervenção foram reproduzidas pela mídia em todo o mundo. Berthia entregou oito anos depois a Briggs um prêmio concedido pela Fundação Americana para Prevenção do Suicídio.

"A Golden Gate é apenas um sinal do que está acontecendo nos Estados Unidos. O problema de saúde mental tornou-se grande demais para ser ignorado", acredita Briggs.

Essa visão também parece ser compartilhada pelas autoridades que administram a ponte. Após décadas de discussão sobre a instalação de uma barreira física para as tentativas de suicídio, a construção desta estrutura começou no final de 2017.

Uma rede de seis metros de largura ficará localizada seis metros abaixo da ponte. O site oficial da Golden Gate alerta que as pessoas que caírem ou saltarem "ainda poderão ficar feridas" ao fazer isso. A um custo de US$ 200 milhões (R$ 829,9 milhões), ficará pronta em 2021.

As estatísticas apontam ser improvável que potenciais suicidas da Golden Gate tentem se matar novamente. Munayer cita um estudo do psiquiatra Richard Seiden, que acompanhou pessoas que desistiram de pular da ponte entre 1937 e 1971. Seiden descobriu que, dos 515 indivíduos dissuadidos, apenas 25 se mataram mais tarde.

Mitos do suicídio


Munayer acredita que iniciativas como o documentário The Bridge tocam em um ponto sensível e confrontam o que ela chama de "mitos do suicídio".

"Às vezes, o simples ato de iniciar uma conversa casual pode ser suficiente para dissuadir alguém de tirar a própria vida. "Então, por que não deveríamos debater essa questão mais abertamente na sociedade?", questiona Munayer.

Poucas pessoas que saltam sobrevivem para contar sua experiência. Pular da ponte Golden Gate significa atingir a água a quase 140 km/h. A taxa de mortalidade é de mais de 95%, segundo dados oficiais.

Os poucos sobreviventes que falam publicamente sobre isso invariavelmente dizem ter lamentado a decisão de pular imediatamente após o salto. Alguns fazem parte do lobby para aumentar as medidas de segurança na ponte. "Essa ponte é uma mensageira da morte", disse Kevin Hines, que pulou em agosto de 2000, à emissora CNN.

"Eu não teria feito isso se alguém tivesse me abordado. Eu estava chorando e desorientado. Ninguém parou para perguntar o que estava errado. Finalmente, uma turista me parou. Ela queria uma foto sua. Concordei, e cinco cliques depois, eu ainda estava chorando, e ela foi embora. Eu sabia que ninguém se importava. Dei um passo para trás e me joguei."

Hines agora fala sobre sua experiência e é um ativista em questões de saúde mental e prevenção de suicídios, usando o slogan #BeHereTomorrow (#EstejaAquiAmanhã, em inglês).

"Se você vê alguém sofrendo, é seu dever se envolver e tentar fazer a pessoa se abrir e compartilhar o que está acontecendo em sua mente. Você pode ser um agente de mudança."

Precisa de ajuda?


O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece serviços de apoio emocional e prevenção de suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, email, chat e voip 24 horas todos os dias.

A ligação para o CVV em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do número 188, são gratuitas a partir de qualquer linha telefônica fixa ou celular. Também é possível acessar www.cvv.org.br para chat, Skype, e-mail e mais informações sobre ligação gratuita.

Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/10/16/os-anjos-que-ja-salvaram-milhares-de-vidas-impedindo-suicidios-em-ponte-dos-eua.htm

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Plano de aula para dois temas que se entrelaçam: automutilação e suicídio

Automutilação e suicídio: como abordar com a turma

Bárbara Rubira e Mariana Hallal (15 outubro 2019)

Em abril, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que determina que hospitais e escolas devem notificar, de forma sigilosa, casos de automutilação e suicídio. A legislação instituiu também a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Segundo dados divulgados em setembro do ano passado pelo Ministério da Saúde, o Brasil registrou 5,8 suicídios por 100 mil habitantes em 2016, com um caso a cada 46 minutos.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no mundo todo. A entidade elaborou um Manual para Professores e Educadores, dedicado aos profissionais considerados fundamentais no combate ao problema entre adolescentes.

Uma reportagem feita pela repórter Júlia Marques mostra que a preocupação com o problema já tem mobilizado ações em escolas, consultórios e universidades. Algumas iniciativas partem inclusive dos próprios estudantes, que formam grupos de apoio com a orientação de especialistas.

Usando a reportagem e o manual da OMS, desenvolva discussões em sala de aula sobre os principais fatores de risco, sinais de alerta e maneiras de prevenir o suicídio.

Propostas de atividades 


1 – Sociologia


Discuta com os alunos: como as ideias de Émile Durkheim sobre o suicídio, elaboradas na França do século 19, se relacionam com o tema nos dias de hoje?

2 – Políticas públicas


Proponha um debate: as iniciativas do poder público no combate e prevenção à automutilação, ao suicídio e a outros problemas relacionados são eficientes? Que outras ações e projetos os alunos conhecem? O que mais poderia ser feito?

3 – Transtornos psicológicos


Pergunte aos os alunos o que eles sabem sobre depressão e ansiedade. Depois, peça a eles que pesquisem sobre o tema e desenvolvam um trabalho com suas percepções sobre o assunto. O objetivo é desmistificar essas doenças e quebrar preconceitos.

4 – Sem rótulos


Proponha uma atividade para debater os rótulos que são impostos aos adolescentes e discuta as consequências que isso pode ter no desenvolvimento de cada um. É um bom momento para trabalhar as diferenças e as particularidades dos alunos, mostrando que ser diferente é normal.

5 – Internet


Questione os alu
nos sobre o uso das redes sociais pelos adolescentes. Eles acham que o uso exagerado e certos comportamentos influenciam na autoestima? A realidade mostrada por personalidades das redes sociais pode deixá-los descontentes com a sua própria realidade? O que eles podem fazer para diminuir esses efeitos negativos das redes sociais?

6 – Habilidades socioemocionais


Proponha atividades que incentivem trabalhos em grupo e fortaleça a empatia entre os alunos. As habilidades socioemocionais também podem ser trabalhadas em conjunto com o psicólogo da escola ou da comunidade, por meio de palestras explicativas sobre temas pertinentes à saúde mental da turma (depressão, ansiedade, uso de álcool e drogas, entre outros). Aproveitar momentos de grande debate sobre o tema, como o Setembro Amarelo, é uma opção.

Banco de dados e materiais sobre o tema


Vídeo para trabalhar a vida no Instagram versus vida real (em inglês)

Guia do Instituto Ayrton Senna sobre competências socioemocionais no cotidiano das escolas
Centro de Valorização da Vida

Manual de prevenção do suicídio da Sociedade Brasileira de Psiquiatria

Instituto Vita Alere, que trabalha com suicídio, prevenção e posvenção

Projeto Cuca Legal, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Associação Americana de Suicidologia (em inglês)

A repórter Júlia Marques fala sobre a produção da matéria foi feita nesse vídeo.


Disciplinas envolvidas: Sociologia, Filosofia, Biologia.

Anos em que as habilidades podem ser trabalhadas: ensino médio

Referências na BNCC: Ciências da Natureza e suas Tecnologias – EM13CNT207*

Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – EM13CHS502*; EM13CHS503*; EM13CHS605*

*(EM13CNT207) Identificar, analisar e discutir vulnerabilidades vinculadas às vivências e aos desafios contemporâneos aos quais as juventudes estão expostas, considerando os aspectos físico, psicoemocional e social, a fim de desenvolver e divulgar ações de prevenção e de promoção da saúde e do bem-estar.

*(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais.

*(EM13CHS503) Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos.

*(EM13CHS605) Analisar os princípios da declaração dos Direitos Humanos, recorrendo às noções de justiça, igualdade e fraternidade, identificar os progressos e entraves à concretização desses direitos nas diversas sociedades contemporâneas e promover ações concretas diante da desigualdade e das violações desses direitos em diferentes espaços de vivência, respeitando a identidade de cada grupo e de cada indivíduo.

O material teve a colaboração de Luciana Cardoso, psicóloga e professora de Filosofia da escola Imaculada Conceição (Pelotas/RS).

Fonte: https://educacao.estadao.com.br/blogs/estadao-na-escola/2019/10/15/automutilacao-e-suicidio-como-abordar-com-a-turma/

Alerta: o Brasil na contramão...

Suicídios caem no mundo, mas crescem no Brasil


Paulo Ritter (9 outubro 2019)

No dia 9 de setembro, véspera do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou um relatório com dados alarmantes. No dia seguinte, lançou, com dois parceiros internacionais, a campanha “40 segundos de ação”, cujo ponto culminante será no Dia Mundial da Saúde Mental, em 10 de outubro, com o foco este ano justamente na prevenção do suicídio.

Os dados do relatório foram amplamente divulgados pela grande mídia. A cada ano, quase 800 mil pessoas se suicidam no planeta – uma morte a cada 40 segundos.  O suicídio foi a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos, atrás apenas dos acidentes de trânsito. Apesar desses números, entre 2010 e 2016 a taxa global caiu 9,8%, mas a região das Américas registrou um aumento de 6%, relacionado segundo a OMS ao acesso a armas de fogo. Parte do declínio da taxa mundial se deve ao fato de mais países terem investido em estratégias de prevenção.

Na contramão da tendência mundial, o suicídio no Brasil aumentou 7% de 2010 a 2016 – último ano da pesquisa da OMS. Entre os adolescentes o aumento foi ainda maior. Segundo uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), a taxa nesse grupo etário, nas grandes cidades brasileiras, aumentou 24% entre 2006 e 2015.  Em 2016, 32 pessoas se suicidaram por dia em nosso país – uma morte a cada estarrecedores 45 minutos –, ou seja, mais brasileiros se mataram naquele ano do que morreram de doenças como AIDS e câncer.

O suicídio está intimamente ligado aos quadros depressivos. Ainda segundo a OMS, 5,8% da população brasileira sofriam de transtornos depressivos em 2015 – um total de 11,5 milhões de brasileiros. O Brasil foi o país com o maior número de deprimidos na América Latina e o segundo nas Américas, atrás somente dos Estados Unidos

O suicídio está intimamente ligado aos quadros depressivos. Ainda segundo a OMS, 5,8% da população brasileira sofriam de transtornos depressivos em 2015 – um total de 11,5 milhões de brasileiros. O Brasil foi o país com o maior número de deprimidos na América Latina e o segundo nas Américas, atrás somente dos Estados Unidos, com 5,9% de deprimidos. Em relação aos transtornos de ansiedade, frequentemente associados às depressões, nosso país foi recordista mundial em 2015, com 9,3% da população apresentando algum transtorno desse tipo, totalizando 18,6 milhões de pessoas ansiosas.

Essas questões dizem respeito ao campo da saúde mental – expressão cara ao contexto brasileiro. Esse campo de atuação profissional e assistência à saúde surgiu a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, iniciada na década de 80, quando o modelo assistencial em psiquiatria passou a ser reconfigurado em suas linhas fundamentais. O modelo tradicional baseado na figura do médico e no hospital psiquiátrico – modelo hospitalocêntrico – passou gradativamente a dar lugar aos chamados serviços substitutivos de base territorial. Foi nesse contexto que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Residências Terapêuticas, os Consultórios de Rua etc. –, serviços de saúde espalhados pelas cidades que formam uma rede de cuidados direcionada às pessoas com transtornos psíquicos graves.

A Reforma Psiquiátrica brasileira é reconhecida internacionalmente como uma experiência rica e pujante, exitosa na substituição de uma visão estritamente médica da loucura por uma visão mais complexa e plural. Com a mudança do modelo assistencial, a loucura deixou de ser uma questão exclusiva da psiquiatria e passou a ser objeto de outros saberes. O campo da saúde mental, portanto, criado a partir da Reforma Psiquiátrica, comporta múltiplos saberes: psicologia, psicanálise, psiquiatria, assistência social, justiça, antropologia, sociologia, artes, cultura etc.

Como tantas outras políticas públicas no Brasil, a Reforma Psiquiátrica também está sendo desconstruída nos últimos anos. O movimento progressista, articulado com a defesa dos direitos humanos em seus vários aspectos, tem sido desmantelado ostensivamente pela chamada “Nova” Política de Saúde Mental. O grande hospital psiquiátrico – o manicômio – voltou à cena, assim como as comunidades terapêuticas passaram a receber dinheiro público a partir deste ano. Estas, similares aos manicômios, voltadas para a dependência química, em sua absoluta maioria estão ligadas a grupos religiosos e preconizam um tratamento baseado na abstinência, na contramão dos avanços mundiais.

Diante do crescimento do suicídio e dos números recordes relativos aos quadros depressivos e ansiosos, podemos perguntar como a assistência pública de saúde no Brasil está enfrentando esses desafios. Os quadros de depressão e ansiedade – como os demais quadros psíquicos – não são como doenças naturais, enraizadas no organismo e independentes do contexto cultural, necessitam, portanto, de estratégias complexas de enfrentamento de suas causas.

Uma das faces mais agudas da depressão é o sentimento de desesperança, no qual o futuro não vale mais a pena. Já a ansiedade é um dos nomes da angústia, aquele afeto próximo do medo que nos invade em situações de perigo, como uma espécie de excesso intraduzível em palavras. Só mais alguns passos, portanto, e podemos entender nossas primeiras posições em relação ao suicídio e aos quadros depressivos e ansiosos.

Freud costumava dizer que a cura em psicanálise vinha pelo amor, no sentido pleno dessa palavra, no sentido de pulsão de vida, dos laços que nos unem aos outros e ao trabalho. Uma análise, portanto, deveria ser capaz de restabelecer a capacidade de trabalhar e amar do sujeito. Atingido esse objetivo, ela poderia ser concluída. Ora, trabalhar e amar ainda são possíveis no Brasil de hoje?

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há atualmente cerca de 13 milhões de desempregados. Os números de subutilizados e desalentados – que simplesmente desistiram de procurar emprego – atingiram o recorde de toda a série histórica da pesquisa, iniciada em 2012; a informalidade também é a maior já registrada. Esses números indicam que um em cada quatro brasileiros em condições de trabalhar está desempregado, trabalhando menos horas do que gostaria ou desistiu de procurar emprego. Não à toa, alguns estudos indicam que vivemos a maior fuga de cérebros da nossa história. Se não há esperança no futuro, melhor ir procurá-lo em outro lugar.

Restaria o amor, constitutivo dos laços que nos unem aos outros, à família, aos amigos, aos parceiros amorosos. Basta, no entanto, uma rápida olhada no noticiário diário ou nas redes sociais para descrermos também desse caminho.

Diante dessa situação, não admira que os números relativos ao suicídio, à depressão e aos transtornos ansiosos estejam nas alturas. Para enfrentá-los, precisamos de políticas públicas de saúde que entendam a complexidade desse fenômeno e, sobretudo, a complexidade do campo da saúde mental. Não será retornando a uma visão exclusivamente médica dos problemas psíquicos que diminuiremos esses números.

Fonte: https://projetocolabora.com.br/ods3/suicidios-caem-no-mundo-mas-crescem-no-brasil/

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Detecção dos sinais de depressão por meio do Twitter

UnB: pesquisador usa Twitter para identificar sinais de depressão


Tendo como base informações públicas da plataforma, o estudante constatou que em 80% dos casos analisados foi possível diferenciar os sinais


Manoela Alcântara (8 outubro 2019)

Pesquisa de um estudante da Universidade de Brasília (UnB) mostrou ser possível identificar sinais de depressão a partir das redes sociais. Tendo como base informações públicas extraídas do Twitter, o bacharel em ciência da computação Otto von Sperling diferenciou sinais em usuários com sintomas da doença e aqueles que não apresentam indícios em 80% dos casos analisados.

“Comecei a pesquisa motivado pelos casos de suicídio que via entre os colegas. Em cinco anos, foram casos após casos. Quis desenvolver uma ferramenta para ajudar as pessoas a identificarem a depressão e ajudar os profissionais com o tratamento”, afirmou o autor da pesquisa ao Metrópoles.

Segundo ele, existem diferenças nos sinais deixados nas redes sociais que são correlacionados com o mal em diversos estudos. O autor explica que a literatura sobre modelos computadorizados que ajudam a detectar, analisar e entender sinais de distúrbios de saúde mental nas mídias sociais têm prosperado desde os anos 2000 em língua inglesa.

No Brasil, essa área de pesquisa é promissora, com uma variedade de nichos a serem explorados. No trabalho elaborado por von Sperling, foi construído um cenário a partir de 2.941 usuários do Twitter. Entre eles, 1.486 depressivos e 1.455 sem depressão. Diante dessas informações, foram induzidos modelos de inteligência artificial para captar os sinais dentro do Twitter.

“Para atingir nosso objetivo, extraímos sinais medindo o estilo linguístico, os padrões comportamentais, os tweets e perfis públicos dos usuários. Os modelos resultantes distinguem com sucesso o grupo positivo (depressivo) e de controle (não depressivo), com escores de desempenho comparáveis ​​aos resultados da literatura”, ressaltou o estudante.

A expectativa é que a descoberta possa ser um trampolim para que mais metodologias sejam aplicadas ao serviço da saúde mental. “De forma alguma estou afirmando que consigo diagnosticar depressão. Não tenho como verificar se o autorrelato é verdadeiro ou não. A intenção é ajudar a compreender os sinais”, diz.
Próximo passo

A ideia é que o estudo seja usado por psicólogos e pelo governo para auxiliar na elaboração de políticas públicas com caráter preventivo. Todos os dados analisados são de perfis e mensagens públicas. “Profissionais de psicologia, por exemplo, podem ter uma visão mais completa do que o paciente precisa”, ressaltou.

A pesquisa foi baseada em propostas da literatura das áreas de psicologia, psiquiatria e sociolinguística, que capturam alguns dos sinais subjacentes do comportamento depressivo. Assim, foi possível ratificar resultados da literatura estrangeira no Brasil, além de distinguir o grupo depressivo do não depressivo.

“Ao fazer isso, demonstramos a utilidade das mídias sociais para detectar traços relevantes de comportamento e estado de espírito dos usuários no Brasil. Como trabalho futuro, propomos estender o conjunto de sinais extraídos dos dados de mídias sociais para captar traços exclusivos dos brasileiros”, diz o estudante na conclusão da pesquisa.

Depressão e suicídio


De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), até 2020, a depressão será a doença mais incapacitante do mundo. Uma das maiores causas do suicídio, o assunto foi amplamente debatido durante o Setembro Amarelo. O Brasil é o país da América Latina com a maior quantidade de pacientes diagnosticados. Em média, 32 brasileiros tiram a própria vida por dia, o equivalente a uma pessoa a cada 45 minutos. No mundo, ocorre um suicídio a cada 40 segundos. Os números dão dimensão da gravidade.

Segundo o Informativo epidemiológico de violência autoprovocada no Distrito Federal, o suicídio é considerado um problema de saúde pública. No período de 2013 a 2018, foram notificados no Sinan/DF 19.388 casos de autoagressão na capital da República. Desse total, 3.816 (19,7%) foram relativos à prática de lesão autoprovocada, sendo 2.691 (70,5%) em mulheres e 1.124 (29,5%) entre homens.

Segundo a pesquisa, as tentativa de suicídio ocorrem em sua maioria entre pessoas de 20 a 39 anos. Além disso, a análise qualitativa mostra que os casos estão relacionados a transtornos em 49% das ocorrências em pessoas no sexo feminino e 18% do masculino.

Debate na Secretaria de Segurança do DF


O tema desperta preocupação também nas forças policiais do Distrito Federal. Por isso, nesta terça-feira (8/10/2019), a Secretaria de Segurança Pública do DF, em parceria com o PNUD, promove o Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio para Profissionais de Segurança Pública.

O evento será no auditório da Academia de Bombeiro Militar, no Setor Policial Sul, a partir das 9 horas. O debate contará com três mesas-redondas: O suicídio como desafio para as políticas públicas institucionais; A vitimização dos profissionais de segurança pública e avaliação de risco; e Experiências exitosas de prevenção ao suicídio.

A SSP/DF e o PNUD escolheram debater o tema uma vez que a quantidade de suicídios entre policiais civis e militares no Brasil cresceu nos últimos anos, totalizando 104 casos entre 2017 e 2018, de acordo 13º Anuário de Segurança Pública. O dado mostra que mais policiais foram vítimas de suicídio do que assassinados exercendo a função.

Fonte: www.metropoles.com/distrito-federal/unb-pesquisador-usa-twitter-para-identificar-sinais-de-depressao

Unioeste auxilia em protocolo de prevenção ao suicídio

Amanda Alves (19 Agosto 2019)

A Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) do campus de Foz do Iguaçu, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMMA), desenvolveram um fluxograma de processos para o atendimento da idealização e tentativa de suicídio. O diagrama conta com novos fluxos para atendimentos e manejo de pacientes dentro da rede pública.

A intenção é melhorar o atendimento da saúde pública aos pacientes com intenções de suicídio e a vítimas de autoextermínio. De acordo com dados epidemiológicos do suicídio, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano no mundo, sendo a segunda maior causa de mortes em jovens de 15 a 29 anos. No Brasil, são 11 mil óbitos por ano.

Por isso, a iniciativa dos novos protocolos busca garantir encaminhamentos adequados, utilizando a política correta para a prevenção do suicídio. Isso surgiu a partir de um projeto de extensão sobre o tema, coordenado pela professora Dra. Elis Maria Teixeira Palma Priotto, que é professora da Unioeste do curso de Enfermagem, e após a apresentação do projeto, recebeu o apoio do Secretário Municipal de Saúde de Foz do Iguaçu, Nilton Bobato.

De acordo com a professora, a integração entre as equipes de saúde é fundamental. “Essa é a fase de debates dos itens do protocolo que estudamos no projeto de extensão, e foi muito bom discutir com os profissionais da rede que atuam na ponta e conhecem os fluxos dos atendimentos, realizamos várias pesquisas junto aos alunos dentro do projeto e houve a necessidade da formalização de um protocolo para o devido encaminhamento dos pacientes atendidos e internados por tentativa de suicídio ou ideação suicida”, conta Elis.

A proposta foi apresentada e debatida em um encontro realizado no último dia de julho, no auditório da Vigilância Sanitária de Foz. Participaram as equipes das Diretorias de Assistência Especializada, Atenção Básica, Urgência e Emergência, Vigilância Sanitária e Epidemiológica, Samu, Hospital Municipal, Assistência Social e o curso de Enfermagem da Unioeste.

https://oparana.com.br/noticia/saude-e-unioeste-lancam-em-foz-protocolo-de-atendimento-a-vitimas-de-tentativa-de-suicidio/


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

InspiraAção - um site a serviço da vida

Plataforma oferece orientação para quem está com a saúde mental vulnerável

Pedro Ezequiel (Jornal da USP) (2 outubro 2019)

Entender as angústias e sofrimentos que sentimos, ajudar quem está passando por depressão ou mesmo profissionais interessados em informações científicas sobre saúde mental. O site InspiraAção traz conteúdos sobre cuidado, apoio e bem-estar para a vida. As informações são baseadas em pesquisas e artigos publicados ou reunidos por especialistas da USP.


"A ideia foi criar um propósito diferente das postagens que tem na internet. Não só para quem precisa da ajuda, mas também para quem quer ajudar", explica Kelly Graziani, professora da EERP (Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto) da USP (Universidade de São Paulo).

Ela coordenou a criação do site desenvolvido em parceria entre o CEPS (Centro de Educação em Prevenção e Posvenção do Suicídio) e o LEPS (Laboratório de Estudos e Pesquisa em Prevenção e Posvenção do Suicídio), ambos da USP.

A plataforma conta com artigos de pesquisadores e professores envolvidos com a área de estudos da saúde mental. Há espaço para a publicação de histórias que inspiram e dão apoio à jornada de cuidados. O acesso a leituras dos textos e ensaios científicos é aberto. Mas, para publicar ou realizar enquetes (sempre de maneira anônima para dar segurança), é necessário fazer um cadastro.

"É uma produção de conteúdo e organização da participação social também. Damos segurança para quem vai postar alguma história. E tudo que criamos no site passa pela análise de especialistas, para evitar os 'conteúdos pró-suicidas'", comenta Aline Conceição, pesquisadora da USP e colaboradora do InspirAção.

O público tem acesso a cartilhas e e-books com orientações para profissionais e para pessoas da comunidade que queiram ajudar de alguma maneira. Há ainda vídeos, filmes e notícias sobre prevenção ao suicídio.

Camila Corrêa, pesquisadora da USP e colaboradora no projeto, destaca que é preciso ter respeito, cuidado e responsabilidade para lidar com a dor do outro. "Entender o suicídio no âmbito social e desestigmatizar como ele é visto hoje. O que fazemos no InspirAção é conhecimento teórico e científico alinhado ao conhecimento prático."

Nos próximos meses, será lançado o Plano de Gestão de Crise. Uma ferramenta individual para a própria pessoa, amigos e familiares identificarem sensores que levam a crises.

A pessoa será atendida no momento em que tiver uma crise que pode desencadear uma situação suicida. Pelo site, serão respondidas questões que foram formuladas através de conhecimentos da literatura médica. No final, serão oferecidos nomes e telefones de profissionais do sistema de saúde e também atividades de psicoeducação. Quem buscar a ajuda não precisará se identificar.

Bruna Marques, aluna de Enfermagem da USP, colabora com o site e explica como é feita a escolha da informação disponível no site. "Cada participante pesquisa uma temática. Depois, dividimos com o grupo e discutimos. É um conhecimento científico para ter contato com a plataforma."

O que é posvenção?


Cuidar de quem perdeu alguém. Esse é o papel da posvenção. No site, o público também tem acesso a informações sobre o acolhimento de quem perdeu alguém através do suicídio.

Segundo a professora Kelly, o termo ainda é pouco usado aqui no Brasil. Mas tem que ser mais difundido. "A proposta é auxiliar no luto pós-suicídio. É uma dor extremamente complicada. As pessoas sentem muito e pensam que não se pode fazer mais nada. Mas é o contrário."

Existe um risco nessa situação de gerar problemas de saúde mental para o núcleo de pessoas da família e de amigos. "A posvenção vem para recomeçar. Para ajudar a redescobrir uma vivência mais saudável para elas. E tem que ser de uma maneira humanizada e acessível", conta a professora da EERP.

O IntegrAção envolve pesquisadoras de doutorado e mestrado, além da graduação. O site foi construído com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Divulgar, aprender e entender


A estudante de Enfermagem da USP Isabelle Wengler e a pesquisadora da USP Larissa Castelo participam da divulgação da plataforma. Elas contam que, no Instagram do IntegrAção, há tutoriais para explicar o cadastro e o login do site. "É mais acessível. Tivemos algumas devolutivas de alguns grupos, no sentido de ver as diferentes faixas etárias demonstrando interesse e curiosidade para acessar o conteúdo."

A escolha da internet como principal canal de comunicação foi feita a partir de monitoramentos feitos no Laboratório de Estudos e Pesquisa em Prevenção e Posvenção do Suicídio. Eles identificaram blogs e postagens nas redes sociais de pessoas com quadros de depressão e conteúdo sobre o assunto.

No entanto, as informações contêm uma série de elementos negativos, como o estigma em relação à doença e a falta de um apoio real no mundo virtual.

"Fizemos estudos no Twitter, por exemplo. Vimos postagens de riscos e o comportamento suicida, muitas vezes. Essas postagens ganham uma potencialização no ambiente virtual, gerando um novo conteúdo nocivo a quem lê", conta a professora Kelly.

Segundo a colaboradora Danielle Maria Nogueira, entre junho e setembro, foram mais de 4 mil acessos ao IntegrAção de locais como São Paulo, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Japão e Portugal. "A intenção é essa: criar multiplicadores envolvidos com a prevenção. E o site, para nós da academia, é de ampliar o horizonte. Chegar até a comunidade."

Você pode seguir o IntegrAção no Instagram: @inspiracaoleps, no Twitter do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Prevenção e Posvenção do Suicídio (LEPS), no Facebook ou entrar em contato através do e-mail cepsusp@gmail.com do Centro de Educação em Prevenção e Posvenção do Suicídio (CEPS).

Fonte: www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2019/10/02/plataforma-oferece-orientacao-para-quem-esta-com-a-saude-mental-vulneravel.htm

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Escola e saúde mental: falando se previne o suicídio

Escola também é lugar para falar sobre saúde mental


Marina Lopes (30 setembro 2019)

Durante todo o mês, a campanha do Setembro Amarelo mobilizou pessoas e organizações do setor público e privado na conscientização sobre a prevenção do suicídio. Entre as medidas preventivas apontadas por especialistas, a educação e o diálogo são apontados como caminhos para tirar o assunto da invisibilidade, o que reforça o papel da escola como um espaço estratégico na promoção de saúde mental. Como um ambiente privilegiado que concentra a maior parte da população jovem do país, ela pode ser uma grande aliada no compartilhamento de informações, na redução de riscos e até mesmo na detecção precoce de sinais que demandam atenção.

Apesar do tema ainda ser visto como tabu dentro de algumas instituições, dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) apontam que de 10% a 20% das crianças e adolescentes apresentam algum tipo de transtorno mental e comportamental. Um estudo com jovens de 7 a 14 anos que vivem na região sudeste do Brasil constatou que um a cada oito estudantes apresenta algum tipo de distúrbio psiquiátrico que justifica a necessidade de um acompanhamento especializado.

“Chegamos a um ponto em que todo mundo está se dando conta de que se vamos trabalhar com saúde de crianças e adolescentes, também temos que trabalhar com as escolas”, afirma o psiquiatra especialista em infância e adolescência Gustavo Estanislau, que coordena o projeto Cuca Legal, iniciativa ligada ao Departamento de Psiquiatria da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) com foco na promoção de saúde mental e a prevenção de transtornos mentais em ambientes de ensino.

Para o médico, um dos benefícios de levar esse debate para o ambiente escolar é a possibilidade de tratar saúde mental sem estigmas. “Dentro da escola eu posso falar do ponto de vista de prevenção universal. A partir do momento em que podemos intervir cedo, essas intervenções ficam cada vez menos complexas, menos medicamentosas e trazem benefícios para o rendimento do aluno dentro da escola e também na sua vida pessoal”, menciona.

Se o aluno demonstra algum tipo de risco, como relatar agressão, pensamentos de morte, mencionar uso de algum tipo de droga ou apresentar cortes no braço, isso deve ser registrado e passado adiante

Embora o psiquiatra chame atenção para o fato de que a escola não é o lugar para o tratamento de crianças e adolescentes, ele menciona que algumas posturas são essenciais para todo educador. “Uma coisa básica é o professor ficar atento. Ele precisa estar com os olhos abertos para detectar sinais que demandam atenção.” Mas o que fazer com essas informações? A partir da sua experiência em atividades de formação, Estanislau diz que os educadores, que já tem uma tarefa árdua, não devem se sentir sobrecarregados ou pressionados a intervir em uma situação. Enquanto algumas pessoas têm um estímulo natural para isso, outras já podem contribuir com o simples fato de levar uma informação adiante ou encaminhar um caso para o atendimento especializado.

“Se o aluno demonstra algum tipo de risco, como relatar agressão, pensamentos de morte, mencionar uso de algum tipo de droga ou apresentar cortes no braço, isso deve ser registrado e passado adiante. Esse tipo de informação denota que ele tem uma necessidade que não é pedagógica”, orienta o psiquiatra, que é um dos organizadores do livro Saúde Mental na Escola, que traz dicas, exemplos e conteúdos teóricos em linguagem acessível para educadores que desejam se aprofundar mais no assunto.

A força do compartilhamento


Na Escola Estadual Amélia Passos, localizada no município de Santa Cruz de Minas (MG), foi a partir da leitura dos cadernos de produção textual dos alunos que professora Laila Cristina de Sousa identificou a demanda de conciliar o aprimoramento de habilidades linguísticas e habilidades de lidar consigo mesmo e com realidades internas (psicológicas) e locais (problemas escolares, financeiros e familiares). “Eu comecei a perceber a necessidade de dar espaço durante minha aula para motivar os alunos a aprender o conteúdo e a trabalhar com a leitura de textos que também permitissem falar sobre nossas emoções”, conta.

Após compartilhar com os alunos a sua própria história de superação e de como o esporte foi importante para a sua saúde mental durante o período de tratamento para a depressão, a professora relata que a turma do ensino médio também começou a sentir confiança em dividir suas questões diante da vida, das lutas e dos desafios. Dessa experiência surgiu o projeto alfabetização e educação socioemocional “LaçoLetrando”, que tem a proposta de fortalecer vínculos por meio da leitura e da escrita.

“Através de cadernos de produção de texto, eu comecei a ver que haviam demandas bem mais complexas do que os relatos de identificação com sentimentos ligados ao humor depressivo. Comecei a ver questões de jovens que estavam sofrendo abusos e várias outras situações que fugiam da minha capacidade de ouvir e auxiliar”, menciona. Diante desse cenário, ela diz que buscou orientação da supervisora e deu início a um trabalho de articulação intersetorial com a prefeitura do município de Santa Cruz de Minas para encaminhar estudantes para a avaliação de uma equipe especializada, que inclui psicólogos e assistentes sociais.

O debate sobre saúde mental na escola e a articulação intersetorial, segundo ela, trouxe resultados significativos que podem ser percebidos no clima escolar. “Eles estão se sentindo mais estimulados e fortalecidos”, destaca. Na melhora da relação entre eles, os alunos também começaram a observar que poderiam ajudar colegas que passavam por situações semelhantes. Dessa iniciativa, surgiu o projeto Amélia Influência, que funciona como uma espécie de clube em que os próprios estudantes compartilham suas questões e promovem ações para fortalecer outros colegas.

O que a escola pode fazer?


“Promover espaços de troca entre os pares faz com que os alunos não se sintam tão diferentes. Eles percebem que existem outros colegas na mesma situação, que passam pelos mesmo problemas que eles”, avalia a pedagoga e especialista em psicopedagogia Ana Rita Bruni, que também é professora do Cesmia (Curso de Especialização em Saúde Mental da Infância e Adolescência).

O professor, mesmo que tenha uma formação diferenciada, não é um psicólogo. A escola também não é uma clínica terapêutica, mas um olhar diferenciado e cuidadoso deve ser levado em consideração

A disseminação de informações confiáveis também é essencial na hora de desconstruir estigmas e falar sobre saúde mental na escola. Além de discutir o assunto com os alunos, Bruni destaca que é interessante que as instituições promovam momentos de formação, discussão e trocas de experiências entre os professores, que podem compartilhar seus desafios e situações de alerta presenciadas na sala de aula. “A necessidade de fazer treinamentos e capacitações não significa que todo mundo vai sair por aí dando diagnóstico, mas os professores precisam entender as diferenças [entre diferentes transtornos] e quais sinais os alunos podem manifestar que indicam algo em desacordo com o funcionamento padrão”, pontua a pedagoga especialista em psicopedagogia. “O professor, mesmo que tenha uma formação diferenciada, não é um psicólogo. A escola também não é uma clínica terapêutica, mas um olhar diferenciado e cuidadoso deve ser levado em consideração.”

De acordo com ela, em função dos casos cada vez mais frequentes que são observados na sala de aula, as escolas têm se demonstrado mais interessadas tratar aspectos da saúde mental. “Elas precisam aprender a lidar com isso e estão mais abertas em busca de informações assertivas. A escola é o ambiente onde o adolescente passa a maior parte do seu tempo. É nesse ambiente que ele vai começar a manifestar essas questões.”

Da sala de aula para a comunidade


A percepção de que o clima escolar estava pesado e o aparecimento de inúmeros casos de automutilação entre estudantes da Escola Municipal Maria Dias Trindade, localizada em um povoado rural de Paripiranga (BA), levaram o professor José Souza dos Santos a desenvolver um projeto para trabalhar saúde mental na escola. “Primeiro eu conversei com psicólogos para entender como eu deveria proceder. A partir daí, elaborei estudos de caso sobre tristeza, depressão e outras situações que poderiam ajudar os alunos a identificar alguns sinais e saber como poderiam pedir ajuda”, conta o educador que foi destaque no Desafio Diário de Inovações 2019.

Com o engajamento dos alunos, o projeto começou a ganhar força. Foram desenvolvidas pesquisas e ações que poderiam ajudar na prevenção da saúde mental. A convite do professor, uma psicóloga também participou de uma roda de conversa com os alunos para esclarecer dúvidas e trazer orientações. “Começamos a trabalhar com a criação de panfletos, infográficos e a produção de um curta metragem para compartilhar informações”, cita.

Ao perceber que também era preciso desconstruir estigmas sobre transtornos mentais com a comunidade, o educador mobilizou a turma para distribuir materiais informativos e orientativos em uma feira livre que acontecia perto da escola. O trabalho com as famílias também foi um ponto fundamental na hora de trazer esclarecimentos sobre a depressão e ainda tratar da importância de cuidar da saúde mental. “Eu moro no interior da Bahia. Aqui, a informação sobre depressão ainda paira na cabeça das pessoas. Muitos não conseguem ver como uma questão de saúde pública”, observa o professor.

De acordo com ele, o trabalho desenvolvido na Escola Municipal Maria Dias Trindade começou a inspirar outros colégios da região, que antes tratavam o tema como tabu.“Como educador, também precisamos lidar com o currículo oculto da escola. Algumas coisas não conseguimos ver, mas podemos sentir no dia a dia. O histórico familiar do aluno e a vida dele também interferem na aprendizagem.”

Fonte: http://porvir.org/escola-tambem-e-lugar-para-falar-sobre-saude-mental/