quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Caso de uma sobrevivente suicida, felizmente acolhida e cuidada...

 Tentou o suicídio por quatro vezes


“Rute” (nome fictício) é um dos sete utentes que tiveram comportamento suicidário que a MenteMovimento está a acompanhar no âmbito do Projeto Habitus


Giselia Nunes (28 novembro 2019)

“Queria adormecer e não acordar mais”, repetiu “Rute” várias vezes durante a conversa com a nossa reportagem, de mais de uma hora e meia. Natural do concelho de Oliveira de Azeméis, esta mulher de apenas 45 anos, divorciada e com uma filha, abriu-nos o livro da sua vida, partilhando vivências que não lembram ao diabo! Ao ponto de nos levar a autoquestionar como é que (sobre) viveu até hoje.

Ao labor, “Rute” começou por relatar uma infância “com muitos problemas em casa”. Mesmo após os pais se terem divorciado, as discussões continuaram a ser o “prato do dia” e ela só queria acabar com aquele “pesadelo”. Tanto que, e uma vez que não conseguiu concretizar o sonho de “entrar em Belas Artes”, no Porto, “viu no casamento “uma oportunidade de sair de casa”. Na altura, “já tomava depressivos, havendo dias em que andava completamente noutro mundo”, admitiu ao nosso jornal.

 “Rute” casou um dia antes de completar 22 anos com um rapaz mais velho, amigo de um antigo namorado, e já depois de ter tentado o suicídio pela primeira vez por ingestão medicamentosa. Ao todo, e sempre utilizando o mesmo método porque diz ter “medo da dor”, foram quatro as tentativas que cometeu até ao momento. Nenhuma delas com sucesso, felizmente.
Ao casar, “foi pior a emenda do que o soneto”
Ao casar, “foi pior a emenda do que o soneto”. Além de “possessivo e ciumento”, como já era quando namoravam, o marido também bebia e consumia drogas, o que “Rute” só veio a saber quando foi viver com ele. Um quadro familiar que viria a piorar com episódios de violência doméstica, de tal forma que “chegava a estar noites e noites acordada com medo dele, porque ele tinha uma faca”, com dívidas por causa do álcool, etc.

“Rute” chegou mesmo a ter vergonha de sair à rua até ao dia em que, com a ajuda do pai, abandonou a casa. Também o divórcio não foi fácil. Mas, “após inúmeras tentativas”, “consegui livrar-me dele e nunca mais o vi até hoje”.

Fechado este “capítulo”, não demorou muito tempo a ter outro relacionamento que, de igual modo, deixou muito a desejar. “Rute” conheceu o segundo marido, pai da sua filha, no local de trabalho, o qual “já tinha outra maneira de ser, de estar”. Mas todo este encantamento “foi sol de pouca dura”. “Começámos [também] a ter muitas discussões”, o que complicou quando “Rute” descobriu que tinha cancro da mama. A sua filha tinha quatro anos quando soube que estava doente.
O marido nunca a acompanhou a uma consulta nem sequer aos tratamentos. Como se não bastasse, “quando chegava a casa dos tratamentos muito mal, ele era agressivo”. “Via-me a perder o cabelo, as pestanas, e reagia como se eu tivesse uma simples gripe”, contou “Rute”, que mais tarde viria a confirmar que era traída.

Tentou pôr termo à vida, novamente, já a filha “tinha seis, sete anos”. Só o facto de não poder pegar na menina ao colo devido à doença fê-la sentir que “era um empecilho, que estava ali a mais”. Chegou até a fazer um vídeo de despedida para a filha, que o pai fez questão de lhe mostrar.
Ao fim de quase 14 anos, e de viver mais um “verdadeiro filme de terror”, “Rute” tentou suicidar-se mais duas vezes. Mas (sobre)viveu! Confidenciou ao nosso semanário que, apesar do “enorme vazio que sempre sentiu”, “há uma força” que a mantém agarrada à vida. E essa “força” é a sua filha, de 18 anos, que, presentemente, está com o pai, mas com a qual tem uma boa relação. “O simples facto de querer continuar a lutar deve-se a querer deixar esse exemplo para a minha filha, quero que ela saiba que a mãe sempre lutou, apesar das dificuldades”, garantiu.
“Rute” ficou a saber do Projeto Habitus e da MenteMovimento através do hospital
“Rute” reside em S. João da Madeira (SJM) há alguns anos. Após mais uma relação amorosa fracassada, vive agora sozinha e encontra-se desempregada, tendo voltado “a ter crises de ansiedade, de nervosismo, de querer partir tudo”. No Hospital de Dia de Psiquiatria, instalado na unidade hospitalar de S. João da Madeira, foi-lhe diagnosticada Síndrome de Borderline ou perturbação de personalidade borderline. Após tantos anos de sofrimento, ficou a saber que tem um transtorno mental grave caracterizado por um padrão de instabilidade contínua no humor, no comportamento, autoimagem e funcionamento.

Também no Hospital de Dia de Psiquiatria ficou a conhecer o Projeto Habitus e a MenteMovimento. E abençoada a hora que isso aconteceu.  Nesta associação fundada em outubro de 2016 por um movimento cívico de utentes, profissionais de saúde e cuidadores informais, da qual faz parte há meio ano, encontrou “pessoas amigas, que se preocupam comigo”. Aliás, “Rute” aceitou dar este testemunho ao labor, “porque a MenteMovimento tem-me ajudado muito”. Além disso, esta sua partilha é também um apelo para que “as pessoas não deixem de dar apoio quando alguém pede ajuda, para que não ignorem”.

“Eu e outros como eu podemos nem pedir ajuda verbalmente, mas fazemo-lo através de sinais (partir tudo discutir, multas, dívidas, etc.)”, referiu, acrescentando que “os outros normalmente só julgam quando deviam questionar mais, deviam olhar para este problema com olhos de ver”. Em seu entender, “as pessoas nem se apercebem que um dos maiores problemas da sociedade é a saúde mental”. “A maior parte diz que está bem e não está. Devemos estar mais atentos”, alertou.

MenteMovimento acompanha pessoas que tiveram comportamento suicidário

E realmente o alerta de “Rute” faz cada vez mais sentido.  Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) estamos mesmo perante “uma epidemia” que mata no mundo uma pessoa a cada 40 segundos. De acordo com os dados mais recentes da OMS, o suicídio é responsável por cerca de 800 mil mortes por ano, apresentando uma taxa maior nos homens do que nas mulheres. E – imagine-se! – na faixa etária entre os 15 e os 29 anos, surge como a segunda causa que mais mata, logo a seguir aos acidentes rodoviários.

Em SJM este “problema de saúde pública” não passa ao lado de quem de direito. Há mais trabalho a ser levado a cabo para além do que é feito pelo Hospital de Dia de Psiquiatria. Tanto que “Rute” é um dos sete utentes que tiveram comportamento suicidário que a MenteMovimento está a acompanhar.

Nesta associação sediada na cidade, integra a Unidade Sócio-Ocupacional, um dos eixos de intervenção do Projeto Habitus cuja entidade promotora é a câmara municipal, que tem como população alvo adultos com experiência de doença mental, clinicamente estáveis, que tenham possibilidade de inserção e reabilitação. Ou seja, nesta unidade não são admitidos indivíduos em casos de deficiência intelectual; consumos de álcool e/ou de substâncias ilícitas; sem adesão terapêutica; demências e doenças neuro degenerativas; sem acompanhamento médico; e/ou que apresentem, em crise, comportamentos agressivos, que possam comprometer a integridade física de outros ou do próprio.
Unidade Sócio-Ocupacional tem 34 utentes
 Os objetivos da Unidade Sócio-Ocupacional são – como explicou ao nosso jornal Ana Ferreira, terapeuta ocupacional da MenteMovimento –  apoiar a nível psicossocial pessoas com experiência de doença mental e dos seus cuidadores; promover atividades ocupacionais e grupos terapêuticos; proporcionar um espaço seguro onde a pessoa se possa expressar de forma livre e usufruir da partilha de experiências; e adquirir competências pessoais e sociais com vista à preparação para a integração profissional.

Presentemente, “temos em funcionamento um conjunto de oficinas sócio-ocupacionais e grupos terapêuticos, quer para os utentes quer para os cuidadores informais, que permitem o desenvolvimento de competências funcionais, no sentido de potenciar oportunidades de participação e inserção social, a todas as pessoas que nos procuram”, prosseguiu a responsável.

Fazendo as contas, no total, são 34 os utentes que se encontram em acompanhamento. Provenientes da região de Entre Douro e Vouga (Oliveira de Azeméis, Arouca, Vale de Cambra, S. João da Madeira e Santa Maria da Feira), são maioritariamente do sexo feminino e com idades compreendidas entre os 26 e os 61 anos.

Ainda a propósito, Ana Ferreira avançou que, destes 34, sete tiveram um comportamento suicidário, principalmente por ingestão medicamentosa. Situação que, como adiantou, se verifica “mais no género masculino, com idades compreendidas entre 26 e os 61 anos”. Além disso, informou que todos os utentes (com ou sem comportamento suicidário) foram referenciados pelo médico de família ou médico psiquiatra, através do preenchimento de uma ficha de referenciação.

CHEDV tem Consulta de Prevenção de Comportamentos Autolesivos e Suicidários
O Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (CHEDV) tem a funcionar no Hospital de S. João da Madeira, desde janeiro de 2017, a Consulta de Prevenção de Comportamentos Autolesivos e Suicidários. Criada no âmbito do Projeto de Prevenção do Departamento de Saúde Mental do CHEDV e contando com três profissionais (dois psiquiatras e uma psicóloga clínica), trata-se de uma consulta apenas de referenciação interna, para pessoas que já sejam acompanhadas em consulta de Psiquiatria Geral, com mais de 18 anos e que, pelo quadro clínico, exijam um acompanhamento especializado nesta área.

Em declarações ao labor, a sua coordenadora, Ana Cristina Lopes, não pôde adiantar o número de utentes que estão a ser seguidos. Mas partilhou algumas informações detalhadas sobre o Projeto de Prevenção do Departamento de Saúde Mental que esteve na sua génese. Este – segundo disse a psiquiatra que participou em outubro passado na tertúlia “Prevenção do suicídio: falar é o melhor remédio!”, promovida pela MenteMovimento em S. João da Madeira – surgiu em 2016 enquadrado no Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (2013-2017).
 
Focando-se na articulação com as estruturas da comunidade, de forma a sinalizar e apoiar indivíduos que possam estar em risco na região, este projeto do CHEDV aposta em ações de sensibilização e no trabalho em rede. Além de ações destinadas à população em geral, como a que teve lugar na Biblioteca Municipal Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, em outubro de 2017, houve outras direcionadas aos porteiros sociais (psicólogos, professores, assistentes sociais), militares da GNR, agentes da PSP e bombeiros, na Torre da Oliva, em novembro de 2018.

O projeto também colaborou na organização do II Encontro do Fórum Social da União de Freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo, este ano, no Dia Mundial da Saúde Mental – Prevenção do Suicídio (10 de outubro) e tem vindo a articular com a Rede Local de Intervenção Social (RLIS). Nota ainda para, em termos de articulação com os cuidados de saúde primários, as ações de sensibilização para profissionais de saúde do ACeS Aveiro Norte (sete sessões replicadas em três centros de saúde – S. João da Madeira, Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis), em janeiro de 2018.

No que diz respeito a cuidados especializados hospitalares, além da Consulta de Prevenção de Comportamentos Autolesivos e Suicidários, Ana Cristina Lopes falou-nos ainda da terapia de grupo e da articulação com equipa de enfermagem do Serviço de Urgência para sinalização dos utentes admitidos por comportamentos suicidários e autolesivos. Por último, referiu-se ao desenvolvimento de um projeto de investigação com a Universidade de Aveiro na área da literacia em depressão e suicídio, na sequência de uma candidatura aprovada e financiada no âmbito do Concurso “Comunicar Saúde”.

Fonte: https://labor.pt/home/2019/11/28/tentou-o-suicidio-por-quatro-vezes/

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