segunda-feira, 5 de julho de 2021

 'Na adolescência, o suicídio pode acontecer muito rápido, sem dar tempo de o jovem ficar deprimido', diz psiquiatra da UFRJ

Eles saem da barra da saia da mãe e querem ganhar o mundo, ter mil experiências, namorar, festejar, viajar e têm todo um futuro com mil possibilidades. No entanto, é na adolescência, quando parecem cheios de vida, que ocorre o primeiro pico de suicídio – o outro é na terceira idade. Às vezes acontece sem depressão, por impulso. E tem acontecido mais. O tema é pesado, mas necessário. Por isso, hoje, Dia Mundial do Combate ao Suicídio, trouxe essa entrevista com o psiquiatra especializado na infância e na adolescência Lucas Hosken, com formação pela UFRJ, onde trabalha, além de atuar em consultório particular. Ele fala, entre outras coisas, da influência dos relatos de depressão e automutilação dos ídolos teen sobre adolescentes já vulneráveis, da angústia com as incertezas que essa nova geração enfrenta e das armadilhas do algoritmo da internet, que vem roubando dos jovens a possibilidade do acaso. “O acaso ajuda a gente com muita coisa. Você estava indo para um rumo e, do nada, vem alguma coisa que não tinha nada a ver com aquilo e que pode te acordar.”

O suicídio em adolescentes está aumentando?

Sim. No consultório, temos visto muita tentativa de suicídio. No Brasil, esse aumento depende do estado, os dados ainda são muito frágeis. Em alguns, a gente vê um grande aumento porque os dados estão sendo mais bem colhidos. Mas mesmo em estados que fazem isso bem, como Rio Grande do Sul e São Paulo, também vemos aumento, só que não na mesma velocidade. Nos últimos 10 anos, a taxa de suicídio entre 15 e 19 anos aumentou 33,5%!

A adolescência é uma fase em que a gente quer viver muitas experiências, e dentro dessa perspectiva o suicídio parece uma contradição. Quais os motivos que levam um adolescente ao suicídio?

A adolescência é uma fase de transição da infância para a idade adulta. Uma coisa fundamental para ser adulto é sair da proteção dos pais e ser aceito pelos pares. O que está por trás da tentativa de suicídio nessa fase são dificuldades nessa transição, a pessoa não se sentir aceita pelos pares, pelos motivos mais variados, e ter dificuldade de sair da proteção dos pais. É nesse conflito que surge a maioria dos casos de suicídio, que raramente é algo pontual, sempre é construído ao longo de um tempo, por mais que a pessoa que comete suicídio não tenha essa percepção e às vezes nem a gente consiga de cara identificar. São atos impulsivos: a menina leva um fora de um namorado e tenta se matar. Ou foi humilhada na internet e, assim que vê, quer pular pela janela. Mas já tinha aí uma dificuldade de controle de impulsos, de regular as emoções. Isso não acontece de uma hora para outra. Além disso, muitas vezes o quadro depressivo já está ali e as pessoas não perceberam. Quase sempre que você pergunta para o paciente que tentou o suicídio o que estava acontecendo, ele consegue dizer sobre a gota d’água. Mas o que foi enchendo o copo, ele tem dificuldade de saber. É um trabalho mais de longo prazo que a gente faz.

Nem sempre o suicídio acontece num quadro depressivo?


A culminação da depressão pode ser o suicídio. Mas existem outros caminhos para se chegar a isso. Porque depressão é o quadro em que o adolescente tem um humor triste, perde a vontade e o prazer de fazer as coisas, altera o sono e o apetite por pelo menos duas semanas. É normal ter dia em que a gente está triste ou não está a fim de fazer nada, mas se dura mais de duas semanas e não melhora de forma natural, a gente chama de depressão. Só que, na adolescência, há uma diminuição natural do controle dos impulsos, e o suicídio pode acontecer muito rápido, sem dar tempo de ficar deprimido, simplesmente por ele ou ela não saber lidar com uma situação que se impõe e pela baixa capacidade de controle da emoção.

Os adolescentes estão menos tolerantes à frustração, à tristeza?

Sim. Até organicamente o cérebro do adolescente tem um controle menor do impulso. Porque, se a gente for pensar lá atrás, quando o ser humano vivia em tribos e os comportamentos foram selecionados evolutivamente, o adolescente precisava ser mais ousado para sair da proteção do lar, encontrar outros pares e formar o seu próprio lar. É preciso uma certa ousadia, quase uma imprudência para fazer isso, porque o mais prudente é você ficar protegido dentro de casa. Então, o cérebro deles naturalmente tem uma permissividade maior a esse descontrole dos impulsos e emoções. Tanto que o pico de suicídio ocorre em duas fases da vida: na adolescência e na terceira idade. Na adolescência, porque eles são mais vulneráveis emocionalmente e estão nessa fase de transição entre a proteção dos pais e a aceitação pelos pares. Estão pulando de um trapézio para o outro: sabem que têm que largar o trapézio de trás e, se não veem que serão pegos pelo trapezista da frente, podem achar que não resta outra saída a não ser se matar. Então, não necessariamente eles deprimiram. Eles podem não ver outra alternativa antes de ficarem deprimidos. Bullying é causa que contribui para o suicídio por isso, é uma percepção de não aceitação pelos pares.

Você falou que é possível perceber uma construção do comportamento suicida, o descontrole das emoções. A automutilação, cada vez mais frequente entre adolescentes, é um desses sinais? Ela tem ligação com risco de suicídio?

A automutilação é uma forma que os adolescentes descobriram de lidar com as emoções. Ela, por si só, não quer dizer que o adolescente quer se matar, porque são lesões geralmente superficiais. Obviamente eles às vezes erram a mão e podem fazer lesões um pouco mais profundas, mas a intenção não é de tirar a vida. Só que esse comportamento já mostra que ele tem dificuldade de lidar com as emoções, que alguma coisa está bem errada. Se você perguntar ao adolescente por que ele está se cortando, ele vai dizer que é porque traz alívio. Tem até uma frase que eles gostam de falar: “É porque a dor física melhora minha dor emocional”. Provavelmente, desde sempre esse alívio era possível se você se cortasse, mas ninguém tinha tido essa ideia. Por que eles inventaram isso? A gente não sabe. Mas foi mais uma forma, não muito bem adaptada, que eles descobriram de lidar com as emoções. Cabe à gente ensinar outras formas menos agressivas contra eles. Mas se a gente vê alguém se cortando não quer dizer que essa pessoa esteja se aproximando do suicídio. No entanto, tem que ficar atento porque, por trás disso, há sofrimento e uma dificuldade de lidar com isso.

Ídolos adolescentes, como Demi Lovato e Billie Eilish, compartilham relatos de depressão, pensamentos suicidas e automutilação, com a justificativa de querer ajudar adolescentes que passam pela mesma situação. Até que ponto isso ajuda ou incentiva a práticas perigosas. Há uma glamourização da tristeza e da depressão?


O fato de elas falarem que estão sofrendo, que sofrem de depressão ou que têm algum transtorno de personalidade, por si só, não faz com que o adolescente tome alguma atitude. Mas, para um adolescente que já esteja vulnerável, que está passando por algo, isso pode indicar um caminho a seguir. Não é só o que se fala, mas também como que se fala. Porque as emoções acontecem dentro da gente, mas os comportamentos que derivam delas – estou sentindo isso, o que eu faço com isso? – são aprendidos. Antigamente, a gente aprendia na “aldeia”, com a família e os amigos próximos da família. Com a invenção internet, essa aldeia pode ser a Billie Eilish, que está a dez mil quilômetros de distância e que não faz a menor ideia de quem ela está influenciando. Isso realmente pode acontecer, o adolescente pode começar a ter esse comportamento. Mas, em defesa da Billie Eilish, acho que ela também não sabe o que está fazendo. Elas também são praticamente adolescentes e estão um pouco perdidas. Só que estão em evidência.

Uma pesquisa recente (veja aqui) concluiu que as redes sociais não aumentam o risco de depressão em adolescentes. Mas sabemos que a internet, assim como pode ser um local de apoio e conexões positivas, também pode levar uma pessoa depressiva a um lugar mais sombrio, como grupos que estimulam o sofrimento, a automutilação, o suicídio. Quais os riscos?


A internet é mais um mundo onde tem de tudo, coisas boas e ruins, como o mundo real. O diferencial é a facilidade, porque é só dar um clique para acessar essas coisas, e o algoritmo, a partir desse clique, acaba reforçando o padrão, em vez de dar alternativas que o acaso do mundo real ofereceria. No mundo real, a gente pode contar com o acaso. Na internet, tem pouco disso, o algoritmo não deixa e restringe a sua capacidade de pensar de forma variada. O acaso ajuda a gente com muita coisa. Você estava indo para um rumo e, do nada, vem alguma coisa que não tinha nada a ver com aquilo e que pode te acordar. Na internet, se você está procurando um tema, ela vai oferecer cada vez mais algo sobre aquilo.

Que cuidados os pais podem tomar?


Não acho que seja através do controle. Pelo contrário. O adolescente está buscando a construção da autonomia, a administração da liberdade. Temos que ensinar essas faculdades a ele e tentar deixar aberto o canal de conversa de forma não julgadora. Embora ele ache que sabe muita coisa — e sabe —, tem muita coisa que ainda não sabe. Cabe a nós instruir e nos aproximar de forma ativa, sem impor, seguindo uma ética do convite, tentando estimular. Mas temos que buscar ativamente, porque eles, por estarem nessa fase, vão tentar se afastar, buscar a aprovação dos pares e sair do controle dos pais. Mas ainda não podem sair completamente. Adolescente não é adulto. Então, a gente tem que exercer o papel de pai chato mesmo. Adolescente não vai ter problema se tiver pai chato. Ele acha que o pai, por definição, é chato. Então pode perturbar, ir lá e oferecer, oferecer de novo e falar mais uma vez. A gente não precisa ser invasivo, controlador, mas tem que estar ativo nesse oferecimento de carinho, de espaço para ele entender e lidar com os sentimentos que vão aparecendo. Se ele está procurando essas coisas na internet, é sinal de que está sentindo algo com que não sabe lidar. Você, como mãe e pai, vai oferecer um outro espaço que não o da internet. O passo que ele deu foi uma busca de ajuda, ainda que seja a ajuda da internet, que às vezes é a pior possível, às vezes é a ajuda para se matar. Mas quando ele buscou a pergunta dele era: “O que faço com isso que estou sentindo?” Você, como pai, pode dar diversas outras alternativas, até oferecer ao seu filho ajuda especializada. A gente não pode abdicar do papel de pai nessas horas. Por mais que às vezes o adolescente esteja querendo que a gente não esteja ali, ele sabe que precisa.

Se essas questões da adolescência sempre existiram, por que tem aumentado o suicídio nessa etapa da vida?

Os espaços onde a sociedade se encontrava de forma mais natural estão acabando, estão menos sólidos. Cem anos atrás, a gente nascia e sabia a vida que teria. Hoje em dia, a gente não sabe porque tem milhões de opções. Isso é bom, mas cria mais incertezas, e a incerteza traz insegurança. Viver com as incertezas é um aprendizado que a gente tem que fazer nesse século.

Em relação à profissão e mercado de trabalho?


Em relação a tudo, até se a gente vai casar, ter filho, onde vai viver. Antigamente a gente sabia, era ensinado a casar e viver feliz para sempre. O caminho estava traçado. Havia os contras disso, porque quem não conseguia se encaixar nesse caminho acabava excluído da sociedade. Hoje, a gente tenta incluir mais pessoas. Nessa tentativa, criam-se incertezas, porque são várias as opções. É o paradoxo da liberdade: a gente tem escolhas, mas escolher pode trazer angústia. É um mundo mais líquido, menos consistente em relação aos caminhos traçados. A gente ainda não conseguiu delinear bem os espaços ou construir um ambiente mais protegido para que esses passos possam ser dados. Antes, a gente fazia isso nas famílias, nas igrejas, nas escolas, nos clubes, mas esses espaços não têm mais a força que tiveram.

A família não tem mais a força que tinha?

Ainda acho que é o melhor ambiente para fazer isso (aprender a escolher), mas nossas famílias diminuíram, e não só a quantidade de filhos. Antes, as famílias eram pai, mãe, filhos, avós, primos, vizinhos. Todos eram muito mais próximos e influenciavam na criação da criança e do adolescente. O apoio deu uma encolhida. Inclusive o dos próprios pais, por causa do excesso de trabalho. E a transição tecnológica, em que os pais não são tão hábeis para lidar com o mundo digital quanto os filhos, também traz insegurança aos pais. Quando os amigos dos filhos eram só os amigos da escola, de certa forma, os pais escolhiam os amigos dos filhos escolhendo a escola em que a criança estudaria. Agora isso não é mais assim.

Em algum momento, todo adolescente enfrenta problema com amizades. Amigos que eram próximos podem brigar ou se afastar. Quando são crianças, os pais promovem encontros, chamam colegas para vir em casa. Na adolescência, eles próprios criam seus encontros. O que uma mãe ou um pai pode fazer se vê que seu filho está se afastando do grupo de amigos e está triste?

A gente não precisa promover as amizades para eles, mas, lembrando a imagem do trapézio, tem que garantir que não é porque ele não achou o trapezista da frente que está perdendo o de trás. Ele precisa saber que o suporte dos pais estará sempre ali. E é importante flexibilizar o pensamento do adolescente, porque às vezes eles são muito rígidos. Tudo é o fim do mundo, e no dia seguinte tem um novo fim do mundo e o que passou não quer dizer mais nada. A gente tem que ajudá-los a enxergar isso sem menosprezar o sofrimento deles. A gente fala “eu entendo que você está sofrendo, mas calma, você ainda não encontrou os seus amigos, mas existem outros” ou “teve esse problema agora, mas daqui a pouco vai voltar ao que era”. Contar a sua experiência também ajuda a fazê-los enxergar em perspectiva. Dizer, por exemplo: “Na minha época, também briguei com minhas amigas e achei que não tivesse amiga nenhuma, mas dois dias depois a gente estava bem” ou “foi quando eu conheci uma pessoa que hoje em dia é alguém com quem posso contar”. Temos que ajudar a expandir o olhar deles. O olhar do suicida e do adolescente — ele também tem essa propensão — é muito estreito. Ele tende a olhar só o que está acontecendo, não consegue ver todas as possibilidades. Por exemplo, ele brigou com a primeira namorada e pensa: “Nunca mais ninguém vai me amar”. Não. Quantas namoradas todo mundo não teve até casar e quantas pessoas são felizes sem nunca terem casado?

Como identificar sinais de que um adolescente está em risco para o suicídio?

Vão aparecer padrões de comportamento, sintomas depressivos. Ele vai se excluindo, para de falar tanto com você e com os outros. Pode estar mais triste, mais choroso, irritado, arredio. Busque saber como está a relação com os amigos, se ele está buscando ativamente, conversando. O uso de drogas também é um fator de risco. E ele pode começar a dar sinais de que não quer mais viver, que a vida não vale a pena, de cansaço. Não um cansaço físico, mas a ideia de estar de saco cheio com a vida. Se soltar frases como “ninguém gosta de mim”, “não tenho amigos”, “a vida está chata” ou se repetir muito “não aguento mais”, devemos ficar atentos. As próprias autoescoriações são algo para a gente ficar atento. São primeiros sinais.

Na série “Os 13 porquês", que na primeira temporada gerou muita polêmica, a protagonista vivia uma série de conflitos importantes e, dentro de casa, parecia a mesma filha de sempre, sem dar sinais de que cometeria suicídio. Existem casos em que não há sinais?

Um tanto disso é a dramaturgia. Mas acho que não há sinais se você já tiver um certo distanciamento dos seus filhos. A tecnologia atrapalha um pouco a convivência. Porque os filhos estão numa tela e a gente também está em outra. Não são tantos encontros dentro de casa. De repente, para que esse canal de conversa possa acontecer, podem-se instituir algumas práticas: uma das refeições feita com todo mundo junto e sem telefone. “Ah, mas aí vou ficar sentado sem fazer nada?”, o adolescente pode perguntar. “Vai”, você responde. Porque, na verdade, ele não vai ficar sem falar nada, as coisas vão começar a acontecer. O adolescente tem dificuldade de buscar ativamente ajuda dos pais, ele está tentando fazer as coisas fora. Então, os pais têm que forçar esses espaços. Se só deixar correr naturalmente, os sinais vão estar ali, mas o adolescente não necessariamente vai exibir de forma ativa e os pais podem não enxergar. No consultório os adolescentes às vezes falam: “Eu estava mal e ninguém foi falar comigo”. Eu falo para eles e vale também para os pais: nem sempre as pessoas têm disponibilidade emocional. Não é porque você está mal que eu sei lidar com o que você está sentindo. Se não sei lidar, tendo a me afastar. Se isso acontecer com os pais, eles não podem se afastar, eles vão ter que trabalhar para buscar ajuda em outro lugar. Há diversos canais: psiquiatras, psicólogos, terapeutas de família...

Estamos em plena campanha do Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. Campanha faz diferença?


Faz, porque a gente começa a prestar mais atenção. Como em toda campanha, existe uma certa glamourização, mas saber que o suicídio é um problema com o qual precisamos lidar é muito positivo. No mundo, acontece um suicídio a cada 40 segundos. Nos Estados Unidos, é a principal causa de morte de meninas adolescentes de 15 a 20 anos. A gente precisa falar disso. No Brasil, a gente tem uma estatística que não põe o suicídio como principal causa de morte porque a gente mata eles antes, o assassinato é a principal causa de morte. Então, não é por mérito nosso que o suicídio não está no primeiro lugar, é por demérito. Mas depois das agressões externas, estão lá as autoagressões.

Resenhando - Diário de uma mãe de adolescente Daniela Dariano
https://extra.globo.com/mulher/resenhando-mae-de-adolescente/na-adolescencia-suicidio-pode-acontecer-muito-rapido-sem-dar-tempo-de-jovem-ficar-deprimido-diz-psiquiatra-da-ufrj-24632088.html

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